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*colaboração especial do amigo Arlei Rockenbach

Vocês sabiam que o criador do Tio Patinhas era surdo? E que desfilava com seu aparelho auditivo por aí bem faceiro? Eu não. Por isso, fiquei honrada quando um amigo (ouvinte) me enviou esta colaboração especial natalina para o Crônicas.

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“Durante 365 ou 366 dias por ano, vivemos o presente, tentando aproveitar do melhor modo possível o tempo que nos foi concedido. A maior parte do que vivemos será esquecido, total ou parcialmente – e alguns momentos, alguns dias, pelo milagre da memória durarão por toda a nossa própria eternidade. Para mim, assim é com os trinta e tantos Natais que vivi até hoje.

 De alguns há mais detalhes, de outros apenas alguns lapsos visuais, mas acredito que de todos posso lembrar – é o único dia com salvamento automático no HD de minha mente (o aniversário, por exemplo, não dá a mesma garantia). E na maioria dos Natais salvos de minha infância, mora a obra de Carl Barks.

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Carl Barks foi um típico caipira norte-americano, nascido no interior do Oregon, que teve pouquíssimo acesso à educação formal ou informal. Nunca teve grandes habilidades sociais (na maior parte do tempo foi um eremita semi-urbano), teve uma vida familiar bastante tumultuada, era portador de uma deficiência auditiva severa e não ganhou uma fortuna com seu trabalho. Mas foi esse mesmo trabalho que lhe levou à imortalidade, uma insuspeita e original imortalidade em um gênero de literatura marginal e muito pouco valorizada: Carl Barks é, se não o maior, um dos maiores autores e desenhistas de revistas em quadrinhos de todos os tempos.

Carl Barks é tão importante no ramo, que é chamado de “Il Maestro” por quase todos os pesquisadores do assunto no mundo, e considerado hors-concours em qualquer eleição de grandes gênios dos quadrinhos. E não foi autor de tirinhas de aventura, de heróis míticos ou icônicos feito Tarzan ou Flash Gordon, nem quadrinhos de contracultura como os de Robert Crumb, ou super-heróis como os da Marvel. Não, Carl Barks desenhou praticamente um único, ingênuo e trivial estilo de personagem durante toda a vida: os patos falantes da Disney.

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Barks começou sua carreira nos estudos Disney com trabalhos menores, mas o primeiro a lhe dar alguma projeção foi o Pato Donald, um personagem já existente no universo Disney, mas de relevância bem menor. Barks acabou construindo toda a personalidade, a família, a cidade e a lenda da Família Pato da Disney. Barks era o responsável tanto pelo argumento quanto pela arte das historietas em si, e nos dois campos revelou-se um gênio: seus traços são muito belos, elegantes, complexos e detalhados – ao contrário do estilo mais simplista de artistas que desenhavam o Mickey, por exemplo. Só isso já faria das histórias de Barks um marco, mas o que realmente o elevou ao status de monstro sagrado foram seus roteiros, cheios de sutilezas e reviravoltas sem deixar de ser engraçados. Barks também aprimorou a técnica de colocar sutilezas na história usando apenas recursos gráficos (as chamadas gags visuais, no estilo cinema mudo de Chaplin). O próprio jeito de contar histórias cômicas mudou a partir de Barks: seus personagens tinham elementos mais refinados de personalidade, metiam-se em aventuras cheias de referências culturais e desenlaces inusitados. O ápice da obra de Barks é o personagem mais famoso que criou, o Tio Patinhas.

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O nome original do Tio Patinhas é Uncle Scrooge (Tio Scrooge) – e é uma referência ao personagem Ebenezer Scrooge do famoso livro “Um Conto de Natal“, de Charles Dickens, no qual um velho sovina é visitado na noite de natal pelos espíritos do Natal Passado, do Natal Presente e do Natal Futuro, uma história clássica da literatura universal. Tio Patinhas foi criado justamente para uma história de Natal, com as mesmas características básicas do Scrooge de Dickens: velho, ranzinza, rico e avarento – mas, no fundo, com um bom coração. O personagem agradou tanto que criou vida própria, histórias próprias e, com o passar do tempo, o hábito de viver aventuras fabulosas que só um milionário poderia desfrutar, como viajar o mundo em busca da Pedra Filosofal ou descobrir a Atlântida sondando o oceano atrás de uma moeda perdida.

Eu amava Carl Barks sem conhecê-lo: eu gostava dos especiais de Natal Disney da Editora Abril, onde a maior parte eram as histórias cujo traço eu identificava de cara: eu não conhecia o autor, mas sabia que aquelas histórias de traços mais firmes e com cenários mais ricos em detalhes eram as melhores e mais deliciosas de ler. Aos treze ou catorze anos descobri a identidade do autor daquelas pérolas (Barks ainda era vivo na época), e quanto mais descobria sobre ele, mais fiquei fã de sua arte e sua originalidade.

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 Barks costumava tirar sarro de si mesmo, e vez outra desenhava-se em meio aos patos. Quase sempre representava a si mesmo como um velho narigudo e magrelo portando um aparelho auditivo, que necessitava usar desde o início da idade adulta e do qual jamais manifestou pudor em assumir – em uma de suas histórias, até mesmo o Pato Donald é obrigado a usar um.

Tenho em casa uma boa quantidade de historinhas Carl Barks, frequentemente reforçada em garimpos aos sebos da vida. Além de constituírem-se (e isso é reconhecido no mundo inteiro) verdadeiras obras de arte, elas me lembram de modo tão pungente a minha infância (e o Natal em especial) que são peças de valor inestimável. Tenho um pouco de Cervantes, de Homero, de Darwin, de Veríssimo… e de Carl Barks. Não o coloco em posição inferior na minha estante a outros grandes escrevinhadores da humanidade.

 Charles Dickens, autor do “Conto de Natal” original, ficou tão associado ao Natal que, quando morreu, uma menina pobre exclamou um “Morreu Dickens? E o Papai Noel, será que morreu também?”. Não morreu, e Carl Barks (que morreu em 2000) auxiliou a perpetuar seus ícones natalinos na figura do Tio Patinhas, que talvez sobreviva por um tempo igual ou maior ao de Ebenezer Scrooge ou até Papai Noel.

 Por ter feito parte da minha infância e hoje fazer parte de minha estante, Carl Barks é um dos velhos e bons amigos que devem ficar por toda a vida… por isso, preciso dizer: Feliz Natal, Carl Barks!”

Aproveito para desejar um FELIZ NATAL a todos vocês – e para agradecer pela presença por aqui, pelo carinho, pela companhia, pelas histórias que dividimos este ano.

Quem quiser conferir os escritos do Arlei Rockenbach, o site dele é http://polifonias.wordpress.com ! E ao Arlei, meu muito obrigada por este post cheio de história e cultura, tão enriquecedor!

About Author

Paula Pfeifer é uma surda que ouve com dois implantes cocleares. Ela é autora dos livros Crônicas da Surdez, Novas Crônicas da Surdez e Saia do Armário da Surdez e lidera a maior comunidade digital do Brasil de pessoas com perda auditiva que são usuárias de próteses auditivas.

8 Comments

  • […] soube que era surdo? Vi num artigo dedicado ao artista publicado pelo blog Crónicas da Surdez. Share […]

    Reply
  • Mariana
    06/01/2011 at 18:10

    Não sabia! Que lindo, o tio Patinhas era o meu preferido! Eu ria horrores com ele, hahaha. Adorei conhecer o rosto do grande maestro, bem risonho!

    Reply
  • joana aparecida
    21/12/2010 at 12:10

    adoro quando recebo os seus blogs. gosto muito e hoje é só prá te desejar um Natal repleto de bons acontecimentos, só alegrias.
    beijoooo…….

    Reply
  • joseismar (José Ismar Petrola)
    21/12/2010 at 01:10

    RT @lakl: Ei, sabia que o criador do Tio Patinhas era deficiente auditivo? https://cronicasdasurdez.com/e-natal-viva-carl-barks/

    Reply
  • Greize
    20/12/2010 at 20:55

    Que isso, só sei que nada sei!!!rssr.Nossa Parabéns ao leitor, nos brindando com mais um conhecimento.
    Amava o Pato Donald, sabe porque?A voz meio , assim estranha, sem entender..rs.Não sei ,se em inglês também era assim ,mas dublado no Brasil, a voz dele era marcante!!
    Ai tantas descobertas.Ontem vi o trailer de um filme não sei se alguém aqui já assistiu , estou louca para ver.Minha Amada Imortal.Sobre Beethoven, todo mudo sabe que ele ficou surdo, mas tem uma cena, que é qdo ele apresenta a 9o sinfonia, eu li relatos dele próprio, que ele ficou bem em frente, para sentir, não ouviu os aplausos só tinha olhos e “ouvidos” a orquestra!!Bjus

    Reply
  • lakl (Lak Lobato)
    20/12/2010 at 18:30

    Ei, sabia que o criador do Tio Patinhas era deficiente auditivo? https://cronicasdasurdez.com/e-natal-viva-carl-barks/

    Reply
  • Lak Lobato
    20/12/2010 at 16:28

    Eita, Paulinha. Não sabia disso também. Eu sempre adorei o Tio Patinhas (alias, era meu apelido na infância, porque sempre fui mão-de-vaca para emprestar dinheiro ou pagar coisas pros outros hahaha)… Quem diria que eu tinha mais em comum com o autor do personagem do que eu imaginava?
    Adorei o presentão de natal…
    Beijinhos
    Lak

    Reply
  • […] This post was mentioned on Twitter by Crônicas da Surdez. Crônicas da Surdez said: O criador do Tio Patinhas era surdo e desfilava seu aparelho auditivo bem faceiro por aí: http://t.co/fmsa9Bg […]

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