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Crônicas da Surdez / Deficiência Auditiva

Memórias auditivas antigas: da audição à surdez

Fiquei exatos dez anos sem pisar em Capão da Canoa, praia na qual passei todos os verões da minha vida até os meus 21 ou 22 anos. Este ano, após uns dias na Praia Brava, passei cinco dias em Capão. Chegando lá, que sensação esquisita. Há dez anos eu não usava aparelho auditivo como hoje (quase 24hs por dia), muito pelo contrário, abandonava os pobrezinhos na caixa e lembrava uma vez na vida e outra na morte de usá-los. O primeiro choque foi chegar na sacada, pela manhã, sem AASI. Meu cérebo logo me deu um toque: “onde estão os barulhos?”. Isso porque, em 2003, eu ficava na sacada e ouvia os carros passando, o barulho dos pneus em dia de chuva em contato com a água, o barulho das pessoas falando e caminhando na rua; e isso, sem ajuda alguma.

praia-de-capao-da-canoa-RS

O segundo choque foi na primeira noite, ao deitar na cama para dormir. Logo me veio à mente que, em 2003, eu deitava com um walkman e ficava escutando com ele todo o CD Ray of Light, da Madonna, até pegar no sono. Hoje em dia, música, somente conectando meus Pure Carat com o Tek ou com o miniTek via bluetooth.

O terceiro choque foi andando na rua, quando avistei um vendedor de casquinhas (não lembro o nome exato, mas eram casquinhas que a gente comprava na beira da praia, bem fininhas e crocantes). Esses vendedores sempre se anunciaram com um pedaço de madeira na mão que fazia barulho com um negócio de ferro, como vou explicar, o negócio meio que parecia um pandeiro. Em 2003, eu ouvia isso na beira da praia e saía correndo pra comprar. Esse ano, só ouvi porque estava de AASI.

O quarto choque foi tomar banho de sol no terraço do meu prédio, sozinha. Em 2003, quando fazia isso, ouvia uma barulheira danada lá de cima. Esse ano, não levei os AASI porque sabia que ia ficar suando horrores no sol e não quis arriscar, mas não aguentei a solidão daquele silêncio olhando pro céu azul e desci correndo pra buscar os benditos. Amo silêncio de noite, detesto silêncio de dia.

O quinto choque foi passar em frente aos prédios dos meus amigos de infância, lembrar de cada um deles e, automaticamente, lembrar também das suas vozes. Senti tanta saudade!

O sexto choque foi lembrar que, em 2003, eu conseguia conversar no celular (analógico, Tijorola, quem lembra daquilo?) com algumas pessoas cujas vozes eu conhecia de longa data, na janela do apartamento.

O sétimo choque foi acordar de manhã no mais absoluto silêncio e ter um flashback da infância, quando eu acordava ouvindo o vendedor de jornal gritando lá fora “Zeeeeero Hooooora”.

Enfim, foi bem esquisito constatar tudo o que a surdez me roubou em dez anos. Mas, bola pra frente. Sem tempo pra perder com lamentações! 😉

About Author

Paula Pfeifer é uma surda que ouve com dois implantes cocleares. Ela é autora dos livros Crônicas da Surdez, Novas Crônicas da Surdez e Saia do Armário da Surdez e lidera a maior comunidade digital do Brasil de pessoas com perda auditiva que são usuárias de próteses auditivas.

12 Comments

  • Cássia
    02/04/2013 at 17:53

    Oi Paula,

    Difícil ler seu texto sem pensar nas minhas lembranças, nos sons que já não ouço mais.

    Recentemente passei 3 fitas VHS para CD das festinhas de 1, 2 e 3 anos da minha filha, que hoje vai fazer 20 e assistir a mim mesma ouvindo tudo sem AASI e o que é pior ver a minha filha escutando tudo sem nem imaginar que aos 19 iria perder também a audição total de um ouvido e já com perda progressiva do outro, mas graças a tecnologia podemos ouvir com os aparelhos e ainda tem o IC. As vezes fico pensando em tudo que perdi mas logo penso que está tudo bem.
    bjs. Cássia

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  • Claudia Dannemann
    18/03/2013 at 15:51

    Puxa, Paula! Lamento ler seu texto! Mas espero de coraçao que você compreenda que é uma percepçao que te falta, mas existem outras tao ou mais importantes. O lugar é lindo e certamente com os aparelhos você pôde curtir tudo ou quase tudo.

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  • MONICA
    17/03/2013 at 21:48

    TBM PASSEI POR VÁRIOS “CHOQUES”COMO ESSES. HJ, SEM APARELHOS ATÉ A VOZ DE MEU PAI FICOU INEXISTENTE. QUANDO CHEGAVA DO TRABALHO, A PRIMEIRA COISA ERA TIRAR O APARELHO, COLOCAR NA SILICA E IR ASSISTIR TELEVISÃO SEM ELE. HOJE, SEM APARELHO NEM CONSIGO SABER SE A TV ESTÁ LIGADA OU NÃO, ENTÃO, TIRÁ-LO SÓ PARA DORMIR E TOMAR BANHO!!!! TBM SINTO SAUDADE DE DETALHES TÃO PEQUENOS QUE SE TORNARAM TÃO GRANDES HJ PARA MIM.

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  • Cristine
    15/03/2013 at 20:11

    Paula,
    Realmente esses sao os sons da praia pra mim tb: zeeerrooo hoooraa, o “tio” da casquinha ( hoje fico maravilhada que a minha filha ouve o téc-téc-téc e já sabe que é a casquinha e sai correndo atrás dele). Faltou o vendedor de puxa-puxa: olhaaaaaa puxa-puxaaaaaaa !!!
    Boas lembranças pra mim tb!
    Beijo

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    • clenilda
      16/03/2013 at 19:37

      Oi Paula…também tenho perda irrevessivél severa a profunda, perdi quando tinha trêis anos de idade, eu era uma crianças falantas, fui orarizada dos onzes anos até os meus 23 anos, conseguir terminar meu segundo grau e outros cursos tbm,como morava no interior, nunca tinha ouvidos os passaros cantar, o coxoar do sapo, os grilos,a cigarra, as arvores,as cachoeiras enfim tudos aquilos que vem da natureza …qundo fui fazer o teste do meu Aas, a primeira coisa que ouvir foi o baraulho de carros,telefones tocando, pessoas falando, foi muito engraçados, ficava perguntando o que isso , o que é aquilo, enfim voltei pro interior onde moravam meus pais, quando passavam perto do corrégo ouvir o um barulho estranho perguntei meu pai o que era aquilo ele disse é o coxoar do sapo e fui ouvindo um monte de coisas e perguntando, sinto saudades de minha infância, hoje tudo é extressante na cidade, quase enlouqueço por causa dos barulhos , eu uso o meu Aas desde os dezesseis anos, até hoje tenho dificuldade pra assimilar as palavras que as pessoas falam, eu faços leituras labiais, tbm conversos com os amigos em libras,tbm amo musicas e o silêncio etc…

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  • Vanda
    14/03/2013 at 20:13

    Oi Paula, tbem comecei a usar aparelhos em 2003, e minha perda era moderada e agora é severa, mas com o aparelho ainda falo ao telefone e ouço bem o barulho do mar, até demais as vezes. Tuuuudo de bom.

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  • Janise
    14/03/2013 at 19:08

    Querida Paulinha, eu também sinto tanta saudade de falar ao telefone, ouvir certos ruídos que hoje com o implante são diferentes do que eu lembro… Mesmo o som da tv, em alguns momentos, não consigo captar nada. E é lógico, se passar um helicóptero ou algo mt barulhento, deixo de ouvir qualquer outro som. Mas, ainda assim, mil vezes estar implantada do que no silêncio total. Um grande beijo.

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  • Claudia
    14/03/2013 at 11:37

    Olá,
    Sei bem o que você sentiu, porque eu também há 10 anos não posso ouvir esses sons “mágicos”. Quanta saudade…
    Sou candidata ao IC, mas confesso que me falta coragem para enfrentar a cirurgia, apesar de saber de tantas histórias de final feliz…
    abraços

    Reply
  • Samira
    14/03/2013 at 11:24

    Paula, na vida tudo gira em perdas & ganhos; chegadas & partidas; razão & emoção; ouvir & silenciar…
    sei bem o que contastes aí.
    Minha perda é progressiva… sempre perdendo um pouco dela.
    Sigamos otimistas e desfrutando de nossos PURE! 🙂
    Bj!

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  • Daiane
    14/03/2013 at 10:46

    Olá, Paula.
    Estou na fase de procurar o aparelho auditivo que eu me adapte.Perdi audição do ouvido direito a quatro anos, logo após nascimento do meu filho.Senti aquele apito barulhento, como você citou na Zero Hora, foi horrível e aos poucos tive que ir me acostumando. Agora estou ansiosa para começar a ouvir sons diferentes com o aparelho auditivo.
    Abraços…

    Reply
  • cibele lima
    14/03/2013 at 09:12

    nossa muito interessante e emocionante, viver tudo isso e derrepente parar é como se um pedaço de vc fosse tirado e vc sabe que não ver ter mais, mas como o autor disse bola para frente, eu concordo pq novas oportunidades virão só basta abrir os olhos e enxerga-las que elas virão.

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  • Maressa
    13/03/2013 at 15:06

    OoOOoI… 🙂

    LINDO POST…

    tenho que confessar nunca ouvi o barulho do mar…a primeira vez que fui pra praia tinha 18 anos e não usava aparelhos Auditivos… então não sei o que falar e a segunda vez que fui foi ano passado não me recordo de te ouvido o barulho do mar ou das ondas quebrando…Mais aproxima vez que eu for vou presta atenção a esses detalhes…

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