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*depoimento de um leitor de 43 anos

O início da minha perda auditiva começou com a escolha da minha profissão  como agricultor, algo natural pois era a tradição na família, embora tivesse uma surdez latente, como descobriria mais tarde.  O ambiente de trabalho em uma lavoura se resume  em lidar com maquinários ruidosos (diesel), na época, final dos anos 80, não existiam preocupações sobre novas tecnologias de  redução de ruídos.

agricultor

Já nesta época evitava estar perto ou atender telefone, era algo traumático, sem falar em interfones e campainhas, simplesmente não ouvia, um simples psiu de alguém chamando era sumariamente ignorado. Algo estava errado, mas como as pessoas poderiam me convencer do contrário? Em 1991 minha perda já estava incomodando o ambiente profissional e social, fui “convencido” a fazer uma audiometria, apesar de dizer que ouvia um pouco mal mas que não era tanto assim, aquela história de não admitir que há algum problema mais complexo.

A primeira experiência não foi muito boa, digamos assim, porque o próprio otorrino foi quem fez a audiometria, e constatou uma perda leve, dizendo que eu possuía uma audição de pessoa com 50/60 anos. Fui apresentado a um vendedor de próteses auditivas e “receitado” um aparelho (era um Starkey), em um ouvido, durou pouco, tanto por problemas técnicos, a adaptação era do paciente com o aparelho e não o contrário, quanto  biológicos, a perda ia avançando aos poucos.

Em 1992 já era preciso colocar outro aparelho, porque o desconforto com um só era muito grande. Ficava girando a cabeça para captar de onde vinha a voz, era um Beltone, mas foi muito mais problemático para me adaptar, simplesmente não se encaixava na perda encontrada, no fim, entre idas e vindas acabou sendo extraviado.

Curioso era a adaptação da prótese. Muito complicado: durava pouco tempo e em seguida começavam os apitos; mastigando então era simplesmente uma sinfonia do desespero, só rindo mesmo e ir levando. Tenho irmãos que ao contrário de mim são muito bons de ouvido, para saber onde eu andava era só acompanhar onde estava o apito

Desnecessário dizer que estava proibido de frequentar lugares ruidosos como boates e apresentações onde o volume além de muito alto não raro era precário. Ainda hoje é comum uma equalização com baixa qualidade, principalmente em palestras, o que é irritante.

Interessante que as pessoas não têm muita noção do que seriam estas próteses, era comum perguntarem, veja só, como eu fazia para tomar banho! Simples, tiro a roupa! Normalmente as pessoas não tem muito senso de humor ao contrário de mim, que procuro ver o lado bom da coisa, não significa que não passo por maus bocados, mais tarde me pego rindo das situações, muitas bem constrangedoras.

Locais em que junta muita gente, fico apreensivo, principalmente em filas de bancos, supermercados e outros. Se alguém puxar conversa fico todo errado e acabo gaguejando ou, o mais comum, respondo coisas sem sentido, acabando com qualquer conversa.

Já para o ano de 1993 as coisas iam de mal à pior, nova queda de audição. Seria não só necessário trocar as próteses como iniciar um tratamento para evitar novas perdas. Por indicação do otorrino foi receitado cinco injeções de Cronassial, a cada dois dias, quando estava para tomar a 3ª injeção, ele morreu em um acidente rodoviário, no entanto segui até o fim. Passou-se algum tempo, em que estive sem contato com qualquer tipo de som seja televisão, rádio (já não entendia mesmo) ou outro tipo de ruído que pudesse me prejudicar ainda mais. Meu retiro foi na campanha somente lendo livros, até mesmo conversar evitava, nada muito difícil já que para fora não existem muitos vizinhos e/ou visitas.

Mas, precisava voltar à civilização. Aproximadamente um mês depois, procurei outro otorrino e o que aconteceu foi algo assustador e muito constrangedor: com a minha nova audiometria em mãos, a queda foi grande em um mês. Ele não conversava, simplesmente berrava e retumbava pelas paredes e eu dizendo que poderia falar mais baixo que estava compreendendo bem, mas não adiantava e pediu que chamasse uma irmã, que estava comigo, para que pudesse informar a gravidade da situação.

Bem, no fim indicou um ex-professor de faculdade, em Porto Alegre, Dr. Moacyr Saffer,  aprendi muito com ele e sou muito grato. Por indicação dele fui   à fonoadióloga Marisa Mainardi, de extrema confiança . Sem dúvida foram muitos anos de aprendizado de como escolher e regular aparelhos para uma perfeita simbiose entre próteses e usuário.

Não sei se tu acreditas em anjos, mas ela foi a primeira de muitas fonos por quem eu tenho admiração. A primeira coisa que me chamou a atenção foi, simplesmente, a voz: cristalina e uma dicção que me deixou como se fosse um orangotango! Realmente não entendo como conseguem ter a paciência e determinação para adaptar e regular vários aparelhos e encontrar um que, por fim, melhor se ajusta às nossas necessidades do momento.

Nessa nova fase o aparelho era bem mais potente (Hansaton) com regulagens por chaves de fenda, esta foi uma parada, imagina sair de aparelhos intra-canais para pendurar duas bananas nas “zoreia”, hilário além de me deixar apreensivo, o que aconteceria se perdesse mais ainda a audição? Iria colocar fones de ouvido e carregaria uma bolsa com uma bateria e um    amplificador como estes de carros? Socorro… 🙂

O caso é que regulava o aparelho no consultório, ele ficava ok. Mas na rua tinha alguma coisa que não batia bem, chegava em casa, veja bem São Gabriel-Porto Alegre, cansativo não é? Levantava, colocava o aparelho ia ler um jornal e… Diabos, meu vizinho tinha um Dog alemão (se fosse italiano cantaria) e latia como se estive dentro do meu ouvido! Não tinha opção senão “regular” no meu ambiente, que era o parâmetro ideal já que sons familiares são melhor reconhecidos e assimilados.

Por volta de 1998, troquei os Hansaton (por falência múltipla de órgãos) pelos Siemens S2+, com eles as coisas começaram a mudar, novos tempos e novas tecnologias, para uso ao telefone foi, de longe, o melhor até hoje, com a bobina específica para telefone a voz simplesmente ficava isolada, inclusive era engraçado quando eu ia atender, só faltava, quem estive na volta, além de emudecer a televisão trancar a respiração para não atrapalhar a conversação, e de nada adiantava dizer que estava na chave T, que era quando captava somente a voz do fone, acontecia inclusive em escritórios, tudo para o bem deste pobre coitado, o brabo era aguentar aqueles olhares todos em minha direção. É simplesmente incompreensível para eles (os ouvintes), mundo louco este nosso não?

Algo digno de nota, foi o teste com aparelho Widex, também não lembro o modelo, simplesmente foi incrível a percepção não só do ambiente mas também a compreensão de pessoas falando em salas distintas, compreendi as duas conversas, infelizmente era muito forte parecia que meus tímpanos seriam furados por agulhas, esta era a sensação, pena.

Atualmente uso GN ReSound Canta7 870-D, desde 2002, o que comprova que além da melhor adaptação entre todos, foi o mais resistente: são quase dez anos de uso contínuo. Excelente aparelho em todos os aspectos e o que me traz uma voz o mais natural entre todos os que usei e testei. Evidentemente que sem os meus anjos da guarda para me auxiliarem na escolha do que melhor se adapta à minha situação, as coisas realmente seriam bem mais complicadas.

 Já a dois anos estou “obeservando” os lançamentos de novas próteses, e realmente já estou um pouco confuso com todas estas novas possibilidades da nova geração de aparelhos, sem dúvida que é uma maravilha saber até onde podemos chegar. Hoje estou com a fono Luciana Cigana e, segundo ela, para a minha perda demora um pouco para disponibilizarem aparelhos com recursos mais elaborados. A minha intenção é por aparelhos com tecnologia RIC ou algo deste gênero mas que tenha o maior nível de recursos possível como integração com telefone, televisores, mp3 e outros, o que nos levaria à uma melhor qualidade de vida.

Tenho 43 anos. Minha família ajuda no que pode, anotando nomes e endereços para que  eu possa entrar em contato, muitas vezes, ao telefone, servem como “ponte” de conversa. Com os mais conhecidos peço para me darem pistas sobre qual é o assunto e assim que possível vou conversar cara-a-cara. Com as pessoas que me conhecem, procuram falar mais pausadamente ou em uma conversa com várias pessoas, deixo ela fluir, quando me perguntam alguma coisa, peço um “resumo” para me inteirar do assunto, na medida do possível participo de grupos de no máximo três pessoas acima disso fico perdido e acabo me afastando.

Com desconhecidos o caso é mais complexo, algumas vezes as pessoas se  recusam a conversar, não têm noção das minhas limitações. Em alguns casos insisto senão fico quieto, é frustrante, mas prefiro assim.  Minha mãe também usa aparelhos auditivos (intra-canal), mas não seguiu meus conselhos para testá-los em Porto Alegre, para que as próteses se adaptassem a ela e não ao contrário, depois ela entendeu o que eu queria dizer…

About Author

Paula Pfeifer é uma surda que ouve com dois implantes cocleares. Ela é autora dos livros Crônicas da Surdez, Novas Crônicas da Surdez e Saia do Armário da Surdez e lidera a maior comunidade digital do Brasil de pessoas com perda auditiva que são usuárias de próteses auditivas.

1 Comment

  • Gui Chazan
    26/09/2011 at 16:37

    Po, quase um colega de profissão. Sou agrônomo e moro em POA, inclusive tive e tenho contato com as mesmas fonoaudiólogas.

    Sei como é difícil o contato com pessoas que não fazem parte do cotidiano, mas gosto de ver que corres atrás disso.

    Abraço e boa sorte com a adaptação das novas próteses!

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