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Primeiro, tivemos a ilustre história da estudante de Medicina surda aqui no Crônicas. Agora, teremos a história de vida de um médico surdo. Ambos são um grande exemplo de superação para nós. Inspire-se! 🙂

A história de um médico surdo

Por recomendação de minha fonoaudióloga, perscrutando este espaço, decidir contar um pouco da minha história, focando num assunto peculiar que não foi ainda comentado nas experiências compartilhadas neste blog. Sou portador de surdez congênita severa-profunda bilateral não-progressiva sensorio-neural, isto é, não tinha mais o que escutar, então nada mais tinha a perder.

Fui diagnosticado quando tinha 3 anos, após uma crise de meus pais pelo fato de não falar e nem interagir como um bebê normal. Recebi um diagnóstico de autismo por um médico, porém, graças à perseverança de minha mãe e ceticismo quanto ao diagnóstico, conseguimos achar um médico de São Paulo que finalmente acertou meu real problema de surdez.

A partir de então, comecei a fazer acompanhamento fonoaudiológico. Como se não bastasse, algo como que uma imposição de destino desde cedo e quase uma covardia a um bebê, minha primeira fonoaudióloga foi contra o uso de aparelhos auditivos e seguia a teoria da máxima adaptação individual frente a uma deficiência. Inicialmente me submeteram a aprender a falar sem o uso de aparelhos. O mais interessante é que só funcionou quando fui alfabetizado. Após algum domínio na leitura e escrita ainda pequeno, aprendi a falar. Errado, claro, mas foram os primeiros passos de uma jornada de 15 anos.

Ou seja, só fui realmente aprender a falar direito, de forma a ser entendido por todos, lá nos meus 18 anos.

Os primeiros aparelhos

Minha mãe achou uma loucura e, com a concordância e a orientação de um otorrinolarongologista, aos 5 anos coloquei meus primeiros aparelhos. Daqueles bem grandões, analógicos, toscos. Só que me adaptei bem e fiquei super feliz. Comecei a querer me entrosar mais com as pessoas. Até namoradinha arrumei. Com essa novidade, a fonoaudióloga entrou em conflito com minha mãe, e cortou relações.

Esses primeiros acontecimentos da minha vida influenciaram todo o resto, trazendo vantagens e desvantagens. Uma vantagem foi eu ser mais independente com o que a tecnologia nos oferece, ou seja, consigo viver e ter uma certa vida social sem o uso dos aparelhos. Outra vantagem foi que, com a alfabetização aos 3 anos, sempre devorei livros e leio muito rápido, pois não houve a fase oral da leitura. Me transformei em autodidata, e só fui estudar aquilo que mais me interessava: ciências e matemática. Muitas desvantagens vieram na mesma proporção, como o modernoso termo bullying e estereotipagem na vida escolar.

A adaptação à vida social

Percebi que o nosso aprendizado e vida social no processo de adaptação custam um tempo longo, e nisso, passa-se toda uma infância e adolescência, período de crucial importância na criação de laços e identificação cultural – principalmente a aceitação por outros. Isso nunca me foi concedido. Assim, digo que criei uma personalidade própria, naturalmente mais introvertida e alheia, que chamaria de personalidade do surdo, algo culturalmente único, singular.

Mais para a frente, na vida adulta, com o amadurecimento e completa adaptação, consegui boa aceitação e integração plena na sociedade dos ouvintes. Nisso, tento resgatar aquilo que perdi. Este seja talvez o maior problema do surdo oralizado. É alguem sem pátria; não é parte integrante da sociedade regular pois não escuta como outros e não é parte integrante dos surdos sinalizados, que é um grupo forte, unido e bem adaptado, pois nunca os conheceram.

A formação de um médico surdo

Enfim, em minha jornada me formei médico. Fiz medicina em São Paulo, na USP, e me especializei numa área que não precisasse de audição. Há especialidades em que a maior aptidão é intelectual e visual, como a patologia e radiologia. Optei por fazer residência em patologia. Como sempre fui perseverante e ambicioso, escolhi ter as melhores notas no colégio. E consegui entrar numa das melhores universidades do país, assim como fazer residência médica na mesma instituição. E tive de encarar o desafio da língua estrangeira…

Surdez, língua estrangeira, e a vida no exterior…

A duras penas tomei a iniciativa de aprender inglês. Foram longos 4 anos de muita teoria para então cogitar a falar alguma coisa. Até hoje caminho em chão de pedras, apesar da fluência para escrever e ler. Até aí, tudo bem, resolvo tudo de forma operacional. O problema comecou quando surgiu a necessidade de viajar com frequência ao exterior, para congressos, simpósios e cursos. Inclusive terminei minha residência nos EUA. Percebi que tudo o que havia passado durante a infância e a adolescência voltou à tona. A incompetência social, o isolamento e a solidão. Isto porque tinha enorme dificuldade de ser entendido e fiz um enorme esforço para me comunicar: a maioria das pessoas se afastava, ou então tudo se resumia a simples protocolos. Associado a isso, evitava todos para não sofrer riscos de frustações e situações embaraçosas. Profissionalmente, como médico surdo, não tenho queixas, pois tudo é mais operacional.

Me pergunto sempre se o que passo é comum a todos nós, se outros têm semelhante experiência. O mais importante, que gostaria de perguntar a todos nos neste espaço: como lidam com a língua estrangeira num país estrangeiro nas situações a turismo, profissionais e sociais?

PS: Paula, como escrevo em um computador na Áustria, configurado para o inglês, não se incomode com a falta de acentos.

Abraço,

R.”

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About Author

Paula Pfeifer é uma surda que ouve com dois implantes cocleares. Ela é autora dos livros Crônicas da Surdez, Novas Crônicas da Surdez e Saia do Armário da Surdez e lidera a maior comunidade digital do Brasil de pessoas com perda auditiva que são usuárias de próteses auditivas.

19 Comments

  • Renata
    22/07/2015 at 15:45

    Belíssima história, fiquei emocionada e feliz! Parabéns pelo caminho trilhado! Você é mais uma prova que podemos ser quem quisermos. Não é fácil e os percalços são muitos, mas não importa! Se a luta é constante, a vitória é certa.
    Uma vez li algo interessante: a palavra “impossible”, na verdade, deve ser interpretada assim: “I´m possible”. Simples assim. Muitas vezes, o que nos limita é a nossa mente.

    Parece a minha fala quando diz serem os surdos soralizados sem pátria: não pertencer nem ao mundo dos ouvintes, nem no mundo dos surdos. Disso surgiu o sentimento de solidão que eu sinto, embora haja pessoas à minha volta (não estar sozinha, mas me sentir solitária).

    O que eu, particularmente, faço no meu dia a dia: se encontro pessoas que não estão dispostas a uma comunicação comigo, simplesmente as descarto da minha vida. Veja, não as julgo. Simplesmente tento não perder tempo com aqueles que nada vão me acrescentar. Treinei minha mente para pensar assim, e evito tristezas e frustrações. Sempre haverá pessoas dispostas a nos ajudarem, então faça tudo o que deve ser feito: continue estudando, arrume meios de se comunicar… como já falaram, vc irá achar um jeitinho para se comunicar.

    R., acho que você tem mais a dizer a nós sobre como aprender o inglês! Também quero saber… o que eu faço é baixar muitoooos vídeos em que falam inglês com legenda em inglês. Eu pratico assim, além de estudar muito a gramática.

    Reply
  • ANDRE
    25/11/2012 at 07:53

    Estou muito emocionado com a sua descrição de força garra e superação, descobri a quatro dias que o meu filho possui perda auditiva profunda bilateral ele tem 2 anos e 4 meses, inclusive nesta segunda- feira(26/11/2012) estarei engazado em procurar recursos para amenisar os problemas dele fiz diversas pesquisas na internet e descobri que se o diagnostico tivesse sido mais cedo pelos 6 meses de idade a situação seria melhor para ele, mais não e hora de chorar o leite derramado e tambem não vou ficar chorando pelos cantos por conta disso, ja resolvi eu e minha esposa queremos que ele tenha a maos todos os recursos possiveis sendo o do aparelho ou implantes e o de sinais de libras para sua educação e depois quando for maior escolha qual mundo que seguir … alias o meu sonho e da minha esposa e que ele vire um medico tão sucessido com você e esta entregue para DEUS resolver……

    Reply
    • Crônicas da Surdez
      26/11/2012 at 11:40

      Andre,
      Verifica se ele é candidato ao Implante Coclear.
      No caso dele certamente vai ajudar mais que aparelhos auditivos.
      Att,

      Reply
  • Janaina
    19/11/2010 at 01:53

    Paula, você podeia abrir um tópico para pessoas que foram obrigadas a deixar suas profissões por conta da perda auditiva. No meu caso sou aeronauta e para esta profissão é necessario ter boa audição por exemplo.
    Bjs querida, que seu dia seja lindo.

    Reply
  • Guilherme Chazan
    13/11/2010 at 01:01

    R., parabéns pela trajetória!

    Tenho 23 anos e sou implantado, mas vivi 16 anos só com próteses. Tenho surdez profunda bilateral neurossensorial = sem aparelho, sem som.

    Quanto às tuas perguntas: como lidar com a língua estrangeira num país estrangeiro nas situações a

    Turismo – os guias turísticos de city tours normalmente falam muito rápido as palavras no seu idioma nativo e até em outros idiomas. Impossível entendê-los, minha sugestão é alertá-lo antes de começar o tour do seu problema auditivo e pedir que fale mais devagar, ou que chame algum guia particular que fale algum idioma que entendas (sim, sai mais caro, mas é isso ou nada) ou usa um guia turístico e vai por conta própria.

    Profissionais – não tenho experiência nessa área, mas eu procuraria falar a língua local (se tivesse domínio) ou inglês. Se não fluísse a conversa por falta de entendimento, usaria o bom papel e caneta ou texto de celular (T9 digita muito rápido). Sim, a pessoa do outro lado tem que ter um pouco de paciência.

    Sociais – minha personalidade é reservada e falar outro idioma é complicado. Procuraria ter conversas com 1-2 pessoas ao mesmo tempo no máximo, para conseguir acompanhar a conversa.

    Espero ter ajudado. Good luck!

    Reply
  • R.
    09/10/2010 at 14:02

    R.,
    Tenho muito orgulho de ler tantos comentários positivos ao seu respeito.
    Nunca tive dúvidas, vc é sempre quem eu penso mesmo que é.
    Não me surpreende, confirma o que sei e vejo sobre vc.
    Incondicionalmente…
    R.

    Reply
  • Greize
    28/09/2010 at 20:32

    É R. Sua pergunta e dúvida ainda fica no ar “como lidam com a língua estrangeira num país estrangeiro nas situações a turismo, profissionais e sociais?” eu também quero saber alguém ai ???rsrs.
    Aqui como vc aprendeu inglês? Sozinho também ou professor particular??Se der para repassar p/ a Paula a resposta.
    Abraços

    Reply
  • Mônica Mendonça
    28/09/2010 at 11:53

    R. Vc é um guerreiro, lutador e vencedor, nadou contra a maré por várias vezes e hj somente saboreia os frutos de sua superação, sua mãe era uma desbravadora e lutadora como eu, não atendendo os anseios de uma fonoaudióloga que não acreditava no que ela mesma te oferecia, isso foi lamentável, mas nem por isso vc deixou de falar mesmo que aos 18 anos com clareza, lindo relato e pra mim um incentivo a mais, por saber que estou no caminho certo com meu Marcelo.

    Lindo, simplesmente lindo seu relato.

    Mônica Mendonça, mãe de um D.A

    Reply
  • Alê Marques
    26/09/2010 at 11:50

    Nossa a experiência de vida do R é de nos deixar sem fôlego. Mais uma vez o blog nos faz refletir como poderíamos tentar entender o outro, aprender com ele e sermos mais benevolentes ao invés de nos afastarmos, nos mostrarmos impacientes e o excluir.
    Beijos

    Reply
  • Marcela Cordeiro
    24/09/2010 at 00:43

    Nossa, esse R. é um guerreiro!
    Batalhou muito pra chegar até onde chegou!
    Estou feliz por ele!
    Que isso nos sirva de exemplo para nunca desistirmos de chegar onde queremos!
    Parabéns para o R.

    Reply
  • Mariana
    22/09/2010 at 20:52

    Adorei o relato de R.! A fga. dele foi bem retrógrada, hein? Felizmente, aí está o R. falando graças aos aparelhos, e ainda por cima, bilíngue! Viva a tecnologia! Eu me enrolo muito pra falar inglês, e evito. Mesmo se for uma palavrinha só, eu soletro. Falta confiança em si, sabe? hehe

    Bjos,

    Reply
  • Greize
    21/09/2010 at 20:21

    Parabéns em primeiro lugar a sua mãe, lutadora que foi, contra tudo e todos.A vc tb.Ser autodidata, é para poucos tanto surdos como ouvintes.
    Qto a sua pergunta final, eu tambem gostaria de saber?Sei que a leitura deve ajudar muito e também vc escrever, o quer na outra língua.
    Afinal tenho amigos que moram no exterior, meu irmão já morou fora, e todos não sabiam e nem sabem(exceto alguns que já moram há muito tempo) inglês.
    Nem falar, nem ler nem escrever.Usam irônicamente “sinais” mostrando aqui e ali.Sei que os surdos sinalizados tem menos dificuldade qdo entram em contato com outros surdos de outro país.Pq quem fundou a LS foi um frânces, então alguns sinais são parecidos, o que facilita.E muitos lugares tem interpretes.
    Agora no seu caso, a dificuldade tb é encontrada pelos ouvintes, e ai entra uma questão que eles sofrem, o que nós sofremos sempre… “sentem na pele” o que nós passamos…Solidão, por ninguém entendê-los e eles não entenderem.Peregrinos numa terra desconhecida…

    Reply
  • Anna
    20/09/2010 at 23:39

    Identifiquei-me muito com a parte em que diz serem os surdos como sem pátria, pois é isso mesmo o que acontece… incontáveis vezes me senti à margem desses 2 mundos.
    Adorei ter encontrado alguém da mesma área, e já formado; tenho curiosidade de saber se a deficiência influenciou tanto assim na escolha da especialidade. Logo, logo também terei de fazer minha escolha; espero escolher algo que, ao mesmo tempo em que tenha aptidão, seja compatível com minha deficiência.
    Fico pensando nas dificuldades que porventura apareçam na minha vida profissional, mas logo as afasto da mente, pois nada que a força de vontade e perseverança não resolvam . Quem quer e faz vai longe.
    Belíssimo relato.
    beijos
    Anna

    Reply
  • Bia
    20/09/2010 at 22:14

    Realmente não há limite para a superação. Caramba, a persistência desse cara é invejável, fiquei emocionada! É uma história bonita, as vezes nos primeiros percalços a gente logo se pergunta se vale mesmo a pena e pensa logo em desistir….vou dormir pensando nisso hoje.

    Reply
  • RT @cronicasurdez: No ar: Não há limite para a superação! http://tinyurl.com/2cnunzz

    Reply
  • Tat Santos
    20/09/2010 at 17:02

    Esse R. é um gênio!
    Sou ouvinte, e acho muito difícil o aprendizado de um novo idioma, visto que eu ‘penso’ em português, ainda não assimilei o raciocínio em uma outra língua (muito também pq eu nunca parei para estudar uma, enfim), mas alguém que não ouve, desde bebê, mesmo assim concretiza tantas realizações acadêmicas de peso como essas, é digno de toda admiração.
    Parabéns R., você é um exemplo, um incentivo para todos!

    Reply
  • Danielle Amorim
    20/09/2010 at 16:47

    Texto nitidamente de quem tem intimidade com a lingua. Parece antitetico, mas mostra a plena adaptacao a outras formas de comunicacao que nao a falada. Dia desses um professor de direito disse a uma turma q so se formou sociedade depois da FALA. Isso eh um raciocinio automatico qdo se pensa em comunicacao. Ela nao eh restrita assim, como bem percebemos na sua experiencia de vida. Aguardo ansiosamente um texto seu relatando as experiencias no exterior. E experiencias q deram certo, pois tenho certeza que vc vai achar um jeitinho para se comunicar.

    Reply
  • […] This post was mentioned on Twitter by Carolina de Souza, Crônicas da Surdez. Crônicas da Surdez said: No ar: Não há limite para a superação! http://tinyurl.com/2cnunzz […]

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  • Laura Moreira
    20/09/2010 at 16:03

    Poxa, que relato incrível!
    Meus parabéns pela sua perseverança, força de vontade em driblar as dificuldades, batalhar e tornar seu desejo realidade.
    Mas infelizmente, ninguém vive sozinho né?
    Existe muita exclusão por parte dos outros mesmo. É muita falta de paciência, hoje é tudo muito corrido e muita gente despreza todo o nosso conhecimento, profissionalismo por não querer repetir, falar devagar, tentar uma aproximação.
    Eu te desejo muita disposição para estudar ainda mais, para que te reconheçam não só seu trabalho, mas também como pessoa e queiram dividir experiências com você!

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