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‘Paula! Boa noite! Primeiro eu quero lhe dizer o quanto esse blog tem sido essencial para que eu conheça o mundo da minha filha. Através dos depoimentos percebo que não é só com ela, entende? Pena que essa tecnologia não era acessível (nem existia), quando ela era criança. Percebi que a minha filha não falava corretamente aos dois anos. Levei-a a uma fono que disse que existia criança que falava mais tarde… Levei a outros e um desses disse que eu era neurótica e que a minha filha não tinha nada. Bem, posso lhe dizer que tudo o que fiz por ela foi intuitivo. Eu não tinha dinheiro para nada, imagine pagar fono. O tratamento nos serviços públicos do Recife era de difícil acesso. Nunca recebi orientação de ninguém para fazer nenhum exame…audiometria eu nem sabia que existia. Chegaram a me chamar de louca quando comecei a investigar porque ela não conseguia falar normal.

Encontrei uma num hospital público que aceitou tratá-la. Disse que ela tinha disfagia, que é dificuldade de articular as palavras. O meu marido era recém  formado em veterinária, mas estava sem emprego formal e estava trabalhando como garçom nos finais de semana…eu larguei a minha faculdade pública no último ano e fui trabalhar para ajudar a sustentar ela e o irmão. Eu não aceitava que ela não falasse. Se ela tinha uma linguagem própria, poderia no meu entender com exercícios melhorar a fala. Só eu entendia o que ela falava. Quando assistia aos programas de TV ela ficava junto a mim e eu  traduzia automaticamente…e assim foi durante muito tempo, inclusive com as conversas das pessoas.

Eu comprei lápis, tinta e trouxe muito papel do meu trabalho e pedi para a menina que me ajudava para deixá-la pintar e fazer muita colagem. Quando ela fez 3 anos o pai conseguiu o primeiro emprego na área e eu consegui colocá-la numa boa escolinha. Ela tentou se socializar, mas as crianças riam dela…se isolou e eu não sabia…participava de tudo…excelente aluna; precisava de ajuda mas não tive…ninguém acreditava em mim. Fui fazendo tudo sozinha e não foi fácil…pense num sofrimento. Finalmente dos 6 para 7 anos ela gripada na terapia e a fono com uma folha na mão com os exercícios, colocou na frente da boca e falou a palavra. Ela desviou-se para procurar a boca da fono que se assustou: ela fazia leitura labial e não sabíamos. Prooonto!! Ela ficou chocada e disse: ‘Mãeee ela precisa de uma audiometria!’ Nossa eu não acreditei. Ela foi comigo ao exame que repetiram 3 dias seguidos. Segundo ela a perda não combinava com a fala que ela já tinha…repetiram o exame na Universidade Católica e o resultado: perda auditiva bilateral de grau severo (queda de rampa) e o pior viria: indicação de AASI nos dois ouvidos.

Fui ver o preço e entrei em pânico, a minha renda famliar era em torno de 3 salários mínimos. Eu ganhava 1 e meio e o meu marido comissões de consultas; os aparelhos custavam 4 mil reais. Fiquei quase louca e fui em todos os lugares que diziam doar. As filas eram de dois anos de espera. Chorei muito e fazia tudo o que era possível. Coloquei na dança e  tudo o que pudesse melhorar a coordenação e a fala, ela respondia muito bem aos estímulos. Eu não tinha de onde tirar tanto dinheiro, sofri o pão que o diabo amassou.

Enquanto isso as histórias de bullying abalavam a sua autoestima. Na escola e na vida, ninguém brincava com ela, isso era raro. O povo ria da maneira como ela falava trocando as letras e eu tentava explicar e chorava escondido. Um dia deitei no sofá e supliquei a Deus ajuda e Ele me ouviu. À noite chegaram na casa da minha sogra uns primos dela que nasceram e moram em SP, com uma criança usando um aparelho. Mandaram me chamar  e o pai da criança ficou impressionado como ela falava relativamente bem sem o tratamento correto; me falou do Centrinho de Bauru onde os aparelhos e todo o tratamento são pelo SUS

Em um mês ele conseguiu a vaga, mas eu não tinha dinheiro, tentei pelo TFD mas disseram a mim que não dariam passagem para eu ir passear em SP. Arranjamos emprestado e lá confirmaram o diagnóstico e ganhamos os aparelhos. Teve  muita dificuldade  de   adaptação. Até hoje volta lá e só usa para assistir aula e ainda reclama muito do barulho. Eu entendo que talvez tenha quem queira se aproveitar da deficiência para conseguir lucros.

Eu assim como muitos precisava de fato e não consegui porque o meu marido era veterinário, eu precisava para custear o tratamento. Precisei pedir descontos em escolas. Comprei livros no sebo e apaguei muito livro do professor que já vinha com as respostas. Colocamos a educação  em primeiro lugar e assim formei os meus filhos. Ela passou numa faculdade particular e terminou Direito sem perder nehuma cadeira com bolsa integral do MEC em cinco anos.  Está estudando para a OAB e quer passar em um concurso público.

A vida foi difícil, conseguimos vencer, mas certamente teria sido melhor se eu tivesse tido ajuda financeira mesmo que temporária. Esse relato é para que as pessoas conheçam outras realidades. Moramos no terceiro polo médico do país (para quem tem dinheiro) e até hoj vejo adultos e crianças sem aparelhos, sem falar porque não conseguem e nem podem comprar. Os que distribuem nos hosptais públicos não servem para todo tipo de perda.

O nome da minha filha é Maria Gabriela, pessoa meiga, linda e muito abençoada e as pessoas que me ajudaram são: Hélio, Rosângela e Vânia que moram em Araçatuba – SP. Peço sempre ao Pai Celestial que os abençoe!  Mães: não desistam dos seus filhos…eu faria tudo outra vez!!!

Obrigada por esse espaço tão esclarecedor!’

About Author

Paula Pfeifer é uma surda que ouve com dois implantes cocleares. Ela é autora dos livros Crônicas da Surdez, Novas Crônicas da Surdez e Saia do Armário da Surdez e lidera a maior comunidade digital do Brasil de pessoas com perda auditiva que são usuárias de próteses auditivas.

11 Comments

  • Gabi Mendes
    04/04/2016 at 15:43

    Obrigada ao blog, por ter publicado a minha história, contada pela minha mãe, eu não costumo falar sobre esse assunto, mas compartilho muitas coisas que acho interessante e me identifico para que tenham um pouco de acesso ao meu modo de ver o mundo e de tantas pessoas.
    Parabéns a todos que contribuem para o blog com suas histórias!
    Obrigada a todos pelas palavras e pelo carinho.
    A família é tudo!
    <3

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  • Fernanda
    31/03/2016 at 11:22

    Uau, que história linda!!! Parabéns a Maria Gabriela pela mãe linda que vc tem!!!
    Me tocou sua história. Um grande beijo no coração

    Reply
  • CINTHIA GABRIELE EUFROSINA MEIRA
    31/03/2016 at 11:03

    Me identifiquei com a história de vcs! Parabéns Maria Gabriela, pela excelente mãe que você tem!!!
    Sou de Bauru, paciente do Centrinho também (Claro! rss…) desde a primeira infância, sempre fiz uso de AASI e só agora em dezembro último, fiz o IC, por opção pessoal. Minha mãe também foi assim, como a sua (infelizmente faleceu em 2010, saudades…), percebeu bem cedo que eu não ouvia, e desde que comecei o tratamento, foi quem mais “pegou no pé” para que eu desenvolvesse minha fala, e herdei do meu pai o gosto pela leitura, que carrego comigo até hoje. Se temos esse privilégio hoje, é graças a Deus e aos nossos pais!

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  • Mirta Ribeiro Rocha Pasquato
    31/03/2016 at 09:11

    Me vi nesta história, passei pelo mesmo com a minha filha, parece que estava lendo a minha história,
    até na dança que você fala, eu coloquei também, assim, como os diagnósticos errados, aparelho do SUS,
    e me virando de tudo quanto é jeito pra ajudá-la. Ela ainda tem 7 anos, mas me inspira e me dá esperanças,
    que ela tenha um futuro de sucesso como a sua filha hj alcançou. Parabéns!

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  • Andressa Aguilar
    31/03/2016 at 02:52

    Parabéns Maria Gabriele sua família vitoriosa.
    A historio de vida da minha filha Cecília é parecidíssima com a sua, porem estamos no começo minha filha tem 4 anos e faz 7 meses que esta usando o aparelho AASI, ela não fala muito bem esta em fase de reabilitação, eu moro em Betim- Mg e o tratamento é feito no centrinho Bauru-SP também.
    Nossa é muito bom saber de historias assim, parecidas, lutas parecidas, me identifiquei muito mesmo e estou muuito feliz pela vitoria que a Maria Gabriela e sua família

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  • Leila
    30/03/2016 at 22:22

    Parabéns Maria Gabriela, pela mãe guerreira que você tem. Estou em lágrimas 🙂

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  • renata
    30/03/2016 at 19:32

    São testemunhos assim que me fazem seguir em frente!
    O meu filho vai conseguir. Eu creio!

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  • Maria Angelica Nogueira
    30/03/2016 at 18:50

    Boa tarde! Sua história me fez lembrar muitos episódios com a minha irma e hoje como sua filha ela está formada, trabalhando e estudando para OAB. Sorte para elas!!

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  • cristiane malheiros
    30/03/2016 at 16:53

    Que bom que a Maria tem você por mãe….Parabéns pela luta…. Deus abençoe sua família

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  • Renee Rassasse
    30/03/2016 at 16:29

    Exemplo de perseverança, fé e iniciativa que toca a alma e derrete nossos corações. Parabéns família abençoada! Coisa linda de se ler!!

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  • Gisele
    30/03/2016 at 15:22

    Parabéns a Maria Gabriela e sua família pela história vencedora!
    Temos muito a aprender com vocês!
    Sou ouvinte, noiva de um surdo usuário de IC. Nunca tinha convivido com deficiente auditivo e aprendo muito com o que tenho lido no Crônicas da Surdez.
    Parabéns e obrigada!
    Bj

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