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Relatos de Pessoas com Deficiência Auditiva

MERGULHADOR surdo: a história do carioca Flávio

Pois é, eu sou surdo e isso nunca me incomodou muito de fato. Sou carioca e filho de portugueses. Por parte de Pai, não há histórico de surdez na família, mas por parte de mãe, há. Minha avó Maria se casou com meu avô Joaquim e eles eram portugueses. Sempre achei super bonitinho o fato dos meus avôs maternos serem primos (mas estava enganado, gera problemas que felizmente em mim nem são assim, tão problemáticos). Tive uma infância normal e sem problemas de audição, apenas não me era difícil lidar ou um problema sério, pois minha mãe tinha/tem surdez já bem avançada e minha avó materna era surda.

Sempre convivi, portanto, com surdos. Nunca liguei; claro que por vezes enchia o saco, lembro de voltar da escolha ainda moleque e sem chave, saber e ver minha mãe pelo “olho mágico” da parte de fora, saber que ela estava na sala ou cozinha, vê-la, tocar a campainha, bater na porta e não ter qualquer ação por parte dela – ela não tinha ou tem qualquer culpa, só não ouvia, assim como agora eu também não ouço. Isso na verdade foi o maior incómodo que eu senti com a surdez, que era dela, em relação a minha existência. Já eu ouvia muito bem e segue a vida.

Comecei a mergulhar desde muito cedo. Aos 14 anos fiz o primeiro curso de mergulho autônomo (com garrafa de ar) mas com uns 10, comecei a me aventurar no mar e mergulhar em apneia (quando o mergulhador mergulha apenas com o fôlego contido nos pulmões).

Na altura meus pais ficaram preocupados e não achavam muita graça, pois tinham receio que eu pudesse morrer. Mas eu sou filho de portugueses do Norte de Portugal, pelo que sou mais teimoso que os Burros Mirandês, um simpático animal que por acaso sofre perigo de extinção.

Como não tinha ajuda dos meus pais, comecei cedo a pegar peixes ornamentais para aquários, e ir comprando meus primeiros equipamentos com a venda dos mesmos em lojas de especialidade, com o passar do tempo, fui melhorando e comecei também a fazer pesca submarina, garantindo bons peixes lá para casa.

Quando meus pais viram que eu não iria largar o osso, lá perceberam que se for para o filho se arriscar, que fosse com formação e lá fui eu. Tirei o curso com 14 de mergulho básico e avançado pela CMAS e CBPDS (dois órgãos de mergulhos o primeiro internacional e o segundo brasileiro). Continuei mergulhando até que com 17 anos, meus pais decidiram viver em Portugal e eu moleque, sem muita escolha, lá tive que vir com eles, não sem trazer o meu material de mergulho.

Até então fiz vida tranquila de um rapaz da minha idade e a surdez não apareceu, tive uma surdez tardia, que começou lá pelos meus 25 anos, mais ou menos. Comecei a reparar de leve que, no carro, se fosse atrás não ouvia o que se dizia à frente. Aos poucos fui perdendo alguma audição, até que perdi parte significativa. Isso me fez, e sem eu ter noção do fato, conseguir ler lábios.

Desde os 28 uso de fato próteses auditivas, hoje com 43, faço vida normal, claro que tendo a dormir melhor que a maioria das pessoas, vizinhos barulhentos não são um problema para mim…

Faço consultas regulares com a minha otorrino e inclusive cheguei a ter observação para ser candidato a um implante coclear no entanto, após 2 anos de análise, chegamos a conclusão que não é para já, o meu ouvido direito tem maior lesão que o esquerdo e que estou no limiar para ser considerado elegível para a cirurgia. Eu não teria problema de a fazer se fosse para a melhoria auditiva, mas a conclusão do otorrino foi, acompanhar minha audição que desde então está estável mas é como ela mesmo diz “francamente má” e se um dia preciso for, alô implantes cocleares, até lá, sigo com as minhas próteses e elas estão sempre comigo, ou nos meus ouvidos, ou numa caixinha específica que me acompanha para onde quer que eu vá.

A minha surdez tem foro genético, consanguinidade familiar de avós e algo mesmo intrínseco lá no ADN e segundo a minha geneticista sofro de uma surdez que se apresenta no início da vida adulta. Além da surdez tenho duas síndromes que, embora faça vida normal, já me criaram alguns problemas de saúde, felizmente resolvidos até aqui. Razão esta que decidi não ter filhos, pois foi confirmado que no caso de ter filhos, eles teriam surdez no início da idade adulta.

Hoje vivo em Portugal, mergulho como um hobbie regular e a surdez nada me impede. Faço desporto, pratiquei jiu-jitsu durante muito tempo, entre outras questões e faço vida autónoma sem qualquer questão.

Meus aparelhos auditivos são reguláveis com uma app para o celular e no verão passado, até descobri uma coisa boa. No meio do mato (gosto de caminhadas e trilhos) em pleno Gerês zona de floresta ao norte de Portugal, lembrei que poderia aumentar ao máximo os aparelhos para ouvir o que me envolvia. Descobri um riacho (pelo som) meio longe da trilha, encontrei até uma perdiz (ave típica e selvagem daqui).

Ao nível profissional, sou publicitário, sócio de uma agência de publicidade por aqui. A surdez não me atrapalha muito, uma vez que de fato, minha vida inteira foi vivida com ela, tornando-a normal seja pelo convívio com minha mãe e avó, seja com o meu próprio problema mais tardio. A única coisa que sinto, é maior cansaço quando tenho muitas reuniões, pois a necessidade de atenção tem que ser triplicada, se forem reuniões em outras línguas, pior é pois ai sotaques, sons que não estamos acostumados complicam um pouco. Mas de resto, nada de errado nessa parca existência.

O mergulho me acompanha até hoje, por aqui o mar é frio e com menos vida que no Brasil, mas eu não me importo, visito o mar do norte com bastante frequência e conheço muito bem diferentes naufrágios como exemplo um submarino Nazi que afundou ao largo da costa a norte da cidade do Porto, ou o River Gurara um antigo cargueiro senegalês que afundo por ter perdido os controlos e bateu na costa do Cabo Espichel em Sesimbra, partindo-se em dois e criando um dos melhores naufrágios de Portugal Continental, em termos de quantidade e variedade de espécies.

Todos os anos procuro viajar e mergulhar, ano passado foi em Cabo Verde, nas ilhas de São Vicente e Santo Antão. No anterior, fui a Índia e nunca pensei que seria bom de mergulhar por lá, tive mergulhos fantásticos e inesperados.

A surdez nunca me impediu de ser quem eu sou, por vezes até acho vantagem. Brinco com amigos que não sei se sou surdo por ironia do destino ou por inteligência, há cada bobagem que a gente ouve…

Tem gente que me elogia pela forma leve como eu levo a surdez e eu só penso: – Fazer como se sou surdo? Ficar chateado são dois trabalhos, já dizia a minha avó Maria, sabedora de longa data, que por sinal, também era surda, como eu, como minha mãe e como agora, minha irmã também é.

Espero que esta história tenha ajudado você cuja a surdez possa ser um problema, a ver que é apenas uma característica e quiçá todos nós surdos possamos viver devidamente, desmistificando a surdez em si.

Embora não tenha filhos, adoro crianças e tenho um afilhado, uma vez ele viu uma das minhas próteses e me perguntou o que era. Como ele tinha uns 6 anos na altura e adorava super heróis, eu respondi-lhe: – É o meu super poder.

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About Author

Paula Pfeifer é uma surda que ouve com dois implantes cocleares. Ela é autora dos livros Crônicas da Surdez, Novas Crônicas da Surdez e Saia do Armário da Surdez e lidera a maior comunidade digital do Brasil de pessoas com perda auditiva que são usuárias de próteses auditivas.

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