A neurociência da AUDIÇÃO: por que o cérebro precisa de SOM?
Nunca tivemos tantas ferramentas para nos comunicar — mensagens instantâneas, e-mails, vídeos, áudios acelerados em 2x — e, no entanto, estamos perdendo, dia após dia, a habilidade mais primitiva e essencial da conexão humana: a escuta.
Como alguém que transitou entre o silêncio absoluto e o mundo dos sons através da tecnologia (primeiro com aparelhos auditivos e depois com dois implantes cocleares), aprendi na pele e na alma a diferença abismal entre ouvir e escutar. Ouvir é um sentido passivo; acontece até quando você dorme. Já escutar… ah, escutar é muito mais complexo. É um ato cognitivo, sofisticado e, acima de tudo, intencional. A gente escolhe o que (e quem) vai escutar mesmo que tenha acesso irrestrito a todos os sons do mundo.
Convido você a mergulhar na neurociência da escuta. Não apenas para entender como seus ouvidos funcionam, mas para compreender o perigo real e imediato que corremos ao negligenciar nossa saúde auditiva em um mundo cada vez mais barulhento e visual.
O milagre e a fragilidade da engenharia biológica da audição
Nos meus livros e no Clube dos Surdos Que Ouvem falo sobre como a audição é o sentido que nos conecta às pessoas, enquanto a visão nos conecta às coisas. Já dizia Helen Keller: “A cegueira nos separa das coisas, a surdez nos separa das pessoas”. E a neurociência nos mostra que essa conexão começa muito antes do que imaginamos.
A audição é o primeiro sentido a se desenvolver, doze semanas após a concepção. O primeiro som que nos nina é o ritmo do coração de nossas mães, uma valsa biológica que nos prepara para o mundo que está por vir. Ao nascer, nosso choque não tem a ver apenas com o frio ou a luz, mas também com a invasão súbita de sons agudos de alta frequência que chegam ao nosso cérebro sem o amortecimento do fluido uterino.
O processo que transforma uma vibração no ar em um pensamento no seu cérebro é fascinante. Ondas sonoras viajam pelo canal auditivo, movem um tímpano da espessura de uma unha e acionam os três menores ossos do corpo humano (martelo, bigorna e estribo). Essa dança mecânica empurra o fluido dentro da cóclea, onde vivem as verdadeiras heroínas da audição: as células ciliadas.
Temos cerca de 15 mil dessas células. Compare com os milhões de receptores visuais e você verá quão ínfimo é esse número. Elas são delicadíssimas e não se regeneram. E é aqui que a neurociência nos dá o primeiro alerta: estamos destruindo essas células sem perceber, seja por falta de informação ou descuido puro e simples.
Os sinais elétricos gerados na cóclea viajam para o tronco encefálico e dali para o córtex auditivo. Mas o som não para aí. Ele ativa a amígdala (nossa central de emoções e medo) antes mesmo que o córtex racional entenda o que está acontecendo. É por isso que um estrondo inesperado faz nosso coração disparar antes da gente entender que foi só um rojão por causa do gol do Grêmio…
Escutar de verdade exige memória auditiva e atenção executiva. O cérebro precisa receber o som, decodificá-lo, compará-lo com padrões armazenados, filtrar o ruído de fundo e extrair significado. Em um ambiente barulhento, isso consome uma energia metabólica imensa, e quando você tem perda auditiva não tratada, seu cérebro precisa trabalhar dobrado apenas para preencher as lacunas das palavras que faltam. Esse esforço cognitivo rouba recursos que deveriam ser usados para memória e raciocínio. O resultado? Fadiga extrema, isolamento social e, como mostram estudos recentes, um risco aumentado de demência e declínio cognitivo. O cérebro que não é estimulado pelo som começa a se reorganizar – e não de uma maneira positiva.
Geração FONE DE OUVIDO
Aumentar o volume “só um pouquinho” pode dobrar a pressão sonora sobre as células ciliadas. O dano é cumulativo. Sabe aquele zumbido que você ouve depois de um show ou de um dia inteiro com fones de ouvido? Aquilo é o som das suas células cilicas morrendo.
Nós ignoramos esses avisos porque vivemos num mundo barulhento que normaliza a agressão auditiva. E o preço disso não será pago apenas na velhice, pelo contrário, já temos uma geração de pessoas com menos de 40 anos vivendo com grandes perdas auditivas e sofrendo de zumbido crônico.
O zumbido é o córtex auditivo tentando compensar a falta de entrada sonora criando um ruído fantasma. A melhor maneira de lidar com ele é tratar a perda auditiva, ou seja, devolver som ao cérebro.
A reabilitação auditiva
Os aparelhos auditivos modernos são computadores sofisticados que ajudam o cérebro a filtrar ruído e focar na fala humana. Os implantes cocleares, que eu uso, substituem a função das células ciliadas, estimulando diretamente o nervo auditivo. Eles são a prova de que a neurociência pode restaurar artificalmente um sentido.
A tecnologia e a Medicina conseguem ajudar a maioria dos casos de surdez hoje mas, ainda assim, a humanidade precisa de uma mudança comportamental, focando na PREVENÇÃO da perda auditiva. Pergunte a qualquer pessoa que já ouviu normalmente e hoje usa aparelho auditivo ou implante coclear e você descobrirá que esses dispositivos não são um ouvido novo e não restauram a perfeição da audição natural. Eles são uma ajuda para ouvir melhor. Portanto, se você ainda não tem perda auditiva (ou se já tem e finge que nada está acontecendo), deixo alguns conselhos:
1. Proteja o que resta: Se você vai a shows, usa máquinas barulhentas ou frequenta lugares com muito ruído, use protetores auriculares.
2. Modere o volume: Se a pessoa ao seu lado consegue ouvir o que sai do seu fone de ouvido, você está detonando as suas células ciliadas.
3. Saia do armário da surdez: Se você já sente dificuldade para ouvir, procure um médico otorrinolaringologista especializado em surdez (minha recomendação pessoal é o Dr. Luciano Moreira). A perda auditiva não tratada custa caro para sua saúde mental, cognitiva, familiar, pessoal, profissional e emocional.
E por último…
O som é a nossa âncora na realidade e nos nossos relacionamentos. Não deixe que o ruído do mundo ou a falta de cuidado lhe roubem essa conexão vital. Preserve sua audição e TRATE a sua surdez. Seu cérebro e sua alma agradecem.

