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Crônicas da Surdez

Sobre cinema e surdez

Foto: Shutterstock

Foram muitos os pequenos prazeres da vida que a surdez me roubou e o implante coclear me devolveu. Se precisar escolher, eu diria que um dos que mais amo, hoje, é poder ir ao cinema e aproveitar cada mísero momento da experiência.

Antes do implante coclear ir ao cinema sempre foi um martírio. A começar pela escolha do filme, que precisava ter legendas – e nós sabemos bem a dificuldade que é encontrar filmes legendados em horários ‘normais’, pois geralmente eles colocam os filmes legendados nos piores horários possíveis. Isso quando encontramos filmes legendados… O pessoal da campanha Legenda Para Quem Não Ouve Mas Se Emociona sabe bem disso.

As frustrações

Perdi a conta de quantos filmes nacionais e desenhos deixei de assistir na vida pela falta de legendas. Passei a afirmar categoricamente ‘eu odeio filmes brasileiros‘ mas isso não passava de auto-defesa, por saber que eles nunca eram legendados e eu nunca conseguiria assisti-los. 🙁

Perdi a conta de quantos filmes legendados lindos eu assisti mas não fui capaz de discutir sobre a trilha sonora com as outras pessoas, afinal, não tinha escutado quase nada das músicas.

Perdi a conta das vezes em que saí do cinema frustrada por depender quase que 100% de legendas para poder assistir um filme.

Perdi a conta das vezes em que alguém me pediu pra diminuir o barulho – quem é surdo não sabe se está comendo pipoca num volume adequado e às vezes esquece de pôr o celular no silencioso e ele toca no meio do filme.

Já me aconteceu até de precisar trocar de pilha de aparelho auditivo no meio do filme, alguém na poltrona de trás chutar minha poltrona enquanto isso e as pilhas – que eram recarregáveis – voarem no escuro. Não só fiquei sem ouvir o filme como precisei, no final, procurar minhas pilhas no chão em meio a milhares de pipocas…

Cinema com implante coclear

Depois do meu primeiro implante, ainda relutei por alguns meses a ir ao cinema com ele. Acho que alguns traumas a gente guarda de um jeito tão forte que, inconscientemente, evita qualquer movimento em direção a eles.

Amo filmes, sempre adorei assistir desenhos animados quando criança, sou apaixonada por inglês e espanhol. A surdez foi me roubando um por um destes prazeres e fui me fechando para não sofrer – tanto – por causa disso…

Até que o IC me devolveu o que eu havia perdido. E só me dei por conta disso quando fui ao cinema com meus enteados assistir a um desenho animado dublado, em 2014. Eles me convidaram, eu não queria ir de jeito nenhum por causa de todos os motivos citados acima, mas fiquei sem graça de dizer não.

E foi assistindo a “Peabody&Sherman” que meu amor pelo cinema voltou com força total. Nunca vou esquecer do que senti naquela sessão, pois tenho certeza de que eu era o ser humano mais grato e mais feliz dentro da sala.

Ouvir e entender um filme dublado inteiro sem legendas me fez sentir como se tivessem arrancado meu coração para fora do corpo. Sentimento indescritível, lindíssimo e poderoso.

Aliás, é muito estranho parar pra pensar em tudo o que hoje consigo fazer com dois implantes cocleares, porque são coisas que, até 2013, eu tinha certeza mais do que absoluta de que jamais faria outra vez nessa vida. E isso me doía muito, muito fundo.

Agora que não dói mais…

Me sinto plena. E revivi esse sentimento no final de semana, quando fui ver La La Land. Lembro de afirmar categoricamente “eu odeio musicais” e agora entendi o motivo: como alguém pode gostar de musicais se não escuta as músicas?

Assistir La La Land foi reencontrar a Paula criança e a Paula adolescente, foi reencontrar músicas que estavam guardadas aqui dentro com carinho mas haviam sido esquecidas após tantos anos de surdez.

Além de reconhecer as músicas antigas e de dar suspiros profundos por causa disso, me deliciei ainda mais ao perceber que com dois IC’s meu entendimento de inglês é muiiiito melhor.

No fim das contas, só me resta pensar que ter sido privada desta felicidade durante tantos anos só fez com que essa ‘devolução’ fosse um milhão de vezes mais valorizada por mim. Eu sei o que é querer ver um filme e saber que não vou entender nada, eu sei o que é ter que inventar diálogos aleatórios na cabeça para o tempo passar, eu sei o que é procurar um filme legendado na programação e não encontrar…

Precisamos nos mobilizar mais, muito mais, por acessibilidade nos cinemas brasileiros para surdos oralizados. Seja legenda, aro magnético e mais filmes na programação. Se não reclamarmos de maneira consistente, nada vai mudar.

Vendo La La Land percebi que agora os cinemas passam pelo menos 15 minutos de propagandas e trailers antes do filme propriamente dito. E, pasmem: nada disso é legendado se for falado em português, as legendas só aparecem nos trailers em inglês. Falta de respeito define! Vamos mudar isso?

About Author

Paula Pfeifer é uma surda que ouve com dois implantes cocleares. Ela é autora dos livros Crônicas da Surdez, Novas Crônicas da Surdez e Saia do Armário da Surdez e lidera a maior comunidade digital do Brasil de pessoas com perda auditiva que são usuárias de próteses auditivas.

1 Comment

  • Fabiana
    04/04/2017 at 14:59

    Sei bem o que é isso, sou surda com surdez moderada e simplesmente detesto filmes nacionais ou dublados.
    Duas semanas atrás fui assistir a Bela e a Fera e no horário que eu queria só tinha em português. Só não viajei o filme inteiro pois assisti a versão em desenho e sabia todas as musicas e roteiro, mas é frustrante ter que ir em um cinema lá na Avenida Paulista para ver um filme legendado em um horário acessível sendo que eu tenho um cinema do lado de casa 🙁

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