Meu nome é Adriano Bisker – mais conhecido na internet como Pai de 5 – e essa é a receita da minha surdez:
Ingredientes
- 4 ovos
- 2 xícaras de açúcar
- 1 xícara de óleo
- suco de 2 laranjas
- 2 xícaras de farinha de trigo
- 1 colher de fermento.
Modo de Preparo
(…)
Sim, pode parecer estranho, mas por causa da publicação de receitas como esta e pela falta de informações vitais me tornei surdo.
O ano era 1973. O país, controlado pelo general Emílio Garrastazu Médici, restringia o acesso a informações fundamentais para uma sociedade que estava cerceada de tantas coisas. Foi a época do “milagre econômico” e o auge da repressão, da tortura e da censura nas artes, televisão e imprensa.
Neste cenário de receitas ocupando o lugar de notícias, de escuridão no lugar de conhecimento, a omissão das autoridades fertilizou terreno para o avanço de uma doença fatal que atingiu uma escala alarmante e que chegou a registrar a média de 1,15 óbitos por dia no Brasil.
A falta de uma informação que poderia mudar toda a minha história me colocou entre a vida e a morte, conforme relatos dos meus pais, a ponto de se valerem de rezas junto a parentes e líderes religiosos da minha comunidade.
A meningite
Com isso, renasci, aos sete meses de vida, de uma forte febre que não cessava e que me levou ao hospital, decorrência da maior epidemia da história deste país – e que meus pais só viriam a saber tempos depois: era meningite.
Sem vacina e sem qualquer informação, decidiu-se covardemente pela omissão geral, motivo este das publicações de tantas receitas como as do primeiro parágrafo. Assim começou a minha jornada. Surdo de ambos os lados contei com muita sorte desde cedo.
Uma rede de proteção me envolveu ao longo dos anos, como a dos meus irmãos que “falavam tudo por mim” ou dos meus pais, incansáveis, na eterna busca do que pairava comigo.
Por ser um bebê calmo e feliz (que “não dava trabalho”) passei a primeira infância praticamente sem comunicação e pouca motricidade. Soltava a mesma palavra para qualquer objeto à minha frente e sorria. Muito.
“Seu filho é surdo”
Na escola, aos 4 anos, após solicitação dos professores, meus pais me levaram ao primeiro de muitos médicos, que decretou: “seu filho é surdo!”
Meu primeiro aparelho auditivo foi o “aparelho de caixinha” – soubesse depois, não era o indicado para mim. Somente aos 6 anos, finalmente pude ter a sensação do que era ser um ouvinte. A alegria era tanta que simplesmente não queria tirar meus aparelhos nem para dormir. Queria escutar meus sonhos também.
Desde então, meus pais passaram a peregrinar pela melhor solução para minha perda auditiva. Foram longos anos de sessões de fonoaudiologia com diversas profissionais maravilhosas que me ajudaram em meu processo de ouvir. Meus pais jamais se renderam.
Recomendados a procurarem uma escola especial para mim, rejeitaram, me colocando em escolas regulares. Instados para que eu aprendesse Libras, rejeitaram. Fui oralizado e treinado a ler lábios, prática que uso até hoje, assim como a coragem de meus pais.
Aparelhos auditivos
Como, desde que me conheço por gente, uso aparelhos auditivos, eles sempre foram parte de mim, verdadeiros aliados.
Evidente que tudo é um processo. No meu caminho de aprendizagem e superação, criei mecanismos de defesa, tais como sempre ter assunto em pauta (para quando me sentia “o excluído” nas conversas) – para isso, eu lia muito e como lia! Ou então, uma vasta cabeleira na adolescência (fase em que imagem é tudo) para esconder aqueles que me salvavam tantas vezes. Até uma piada pronta para quando o meu sotaque era questionado, eu tinha.
Não se engane, não conto a minha história para quem está nesta fase da descoberta da surdez e buscando o caminho de encarar a vergonha e os receios de ser um surdo. Para estes, a Paula pode apresentar depoimentos incríveis e motivadores.
Estou aqui falando diretamente para vocês, os pais. Defendo com todas minhas forças: não sintam culpas, receios ou vergonha. Melhor ainda: não escondam esta deficiência. A perda auditiva do filho é algo que está ali e deve ser encarada de frente.
Acredite, com o apoio certo, um ser humano pode estar apto a (quase) todas atividades do cotidiano. Mas nenhuma solução técnica sobreviverá sem o abraço da família.
Vida que segue
Voltando à minha história, de forma resumida segui em frente, terminei a escola, me formei em advocacia (onde a oratória se faz muito presente) e tive filhos. Muitos filhos. Dois incríveis meninos do meu primeiro casamento e as minhas lindas trigêmeas do casamento atual. Outra sorte incrível na minha vida. Meus filhos e minha atual esposa, que me ama do jeito que sou.
Aliás! Sobre filhos, consegue imaginar: trigêmeas? Mas como? Eu escuto meus filhos? Sim, e como escuto!
Mas eventualmente, faço questão de não escutar: sabe aquela fase em que a cria quer tudo e resolve conquistar sempre no choro? Então, nesta hora eu utilizo um artificio que somente pessoas surdas conseguem: sim, eu desligo os aparelhos e vejo uma linda criatura se esgoelando por algo que nem lembra mais o que era. E, internamente, ainda me divirto!
Quer ver como sempre podemos enxergar o lado positivo das coisas? Que tal saber sobre as maravilhosas noites de sono em um silêncio total? Aquele sono profundo que só quem é surdo sabe como é.
Nem tudo são flores…
Ok, nem tudo são flores. A rejeição, vergonha, necessidade da aceitação, discriminação, as constantes frustrações fazem parte do pacote de um surdo. (Cá entre nós, fazem parte da vida de qualquer um, né?.)
Cada um deve buscar o seu caminho para superar mais esta batalha. A minha foi travada com a ajuda dos meus pais após a conscientização de minha surdez e eu precisei de muita coragem para mudar a minha história, e jamais desistir.
Para essa receita funcionar, precisei do ingrediente mais óbvio e, por isso mesmo, o mais difícil: acreditar em mim mesmo.
O movimento#surdosqueouvem é um divisor de barreira para quem enfrenta estas batalhas pessoais. Estou junto com a Paula e você, pode contar comigo, através de minhas redes, para qualquer dúvida!
Meu site: www.paide5.com.br
Meu Instagram: www.instagram.com/paidecinco
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1 Comment
Raquel navarro
09/10/2021 at 12:01Olha so o que wchei na internet…e eunfiz parte de um pedacinho dessa.adolescencia…mas nem lembro de vc enverfinhado..que delicia saber de vc e da sua historia, mesmo tantos anos depois