*depoimento do leitor Gilberto Ferreira, Oficial de Chancelaria do MRE
“Para falar de superação, tenho que falar dos meus pais. Tenho que falar dos meus avôs. Estes, sim, são exemplo de superação. Eu sou apenas um dos frutos da superação deles. Meus avôs paternos, deixaram Portugal porque a crise lá estava brava e não tinham como garantir a subsistência. Assim, partiram para o Brasil, um país desconhecido, com um filho pequeno (irmão mais velho de meu pai) para nunca mais tornar a ver a terra natal. Já minha mãe é filha e neta de pescadores no nordeste. Gente humilde, sem muita instrução. Que também migrou para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor.
O que essas famílias tinham em comum, além da pobreza e da paixão mútua que meus pais tem por si até hoje? Acreditavam na educação! Apesar de todas as dificuldades, meus pais estudaram no Colégio Pedro II, melhor escola disponível no Rio de Janeiro naquela época… E foram os primeiros de ambas as famílias a obter o diploma de nível superior! E meus avôs transmitiram esse valor a todos os seus descendentes. Tenho uma tia, por exemplo, que só conseguiu se formar com mais de 50 anos, mas não desistiu até conseguir! Na minha geração, todos têm curso superior.
Infelizmente (felizmente para nós, os filhos!), minha mãe, como acontecia naquela época, abandonou a carreira para cuidar dos filhos. Eu e meus irmãos jamais saberemos o quanto ela sacrificou por nós. Meu pai, o humilde filho de imigrantes, fez concurso para a Petrobrás, passando nos primeiros lugares. Mas, quando lhe foi oferecida uma oportunidade para desenvolver um projeto da OEA na Colômbia, não hesitou em partir (como seus pais) para um país desconhecido com filhos pequenos. Depois, novamente, fomos morar em mais um país: meu pai foi fazer Mestrado e Doutorado em Educação (claro!) nos EUA.
E é por tudo isso que, quando a Paula me pediu para escrever sobre a minha suposta história de superação, eu hesitei. Quem entende de superação são meus pais. Quem entende de superação eram meus avós. Eu já encontrei a estrada pavimentada. Deles herdei a curiosidade pelo conhecimento… O gosto pelo aprender…
E tive sorte! Muita sorte! Minha deficiência foi diagnosticada quando morávamos nos EUA. Lá tive à minha disposição toda a assistência e aparelhagem necessária (que, embora, no século XXI pareçam até bem toscos, não existiam no Brasil na época). Morávamos em Pittsburgh e lá havia uma política de integração na educação para deficientes (fossem auditivos, visuais, cadeirantes, etc.), adapatação de uma já bem sucedida política de miscigenação racial (lembre-se que estamos falando dos EUA dos anos 70). Assim, escolas comuns eram adaptadas para receber portadores de uma determinada deficiência.
E lá fui eu, para uma High School bem longe da minha casa (a prefeitura pagava um táxi me pegar em casa e me deixar ao final das aulas) preparada com equipamentos, fonoaudiólogos e professores especializados. Mas o mais importante é que a escola era equipada com alunos! Isto mesmo, alunos comuns. E havia a preocupação de não colocarem mais de um aluno surdo na mesma sala. Assim, estes tinham que aprender a conviver com não-surdos e os não-surdos tinham uma grande lição de convivência.
A idéia era integrar os deficientes auditivos no mundo. E isso implicava falar inglês, ler lábios, usar aparelhos. A língua de sinais era desestimulada, porque reduzia o convívio a pequenos de guetos de pessoas que dominavam esse idioma… Havia professores que traduziam as aulas para alunos transferidos que já dominavam a linguagem manual e ainda não tinham capacidade de acompanhar as aulas de outra forma. Mas isso era gradualmente suprimido. Falando assim, parece que era fácil, né? Mas não era fácil, não! Tínhamos fonoaudiologia na escola todos os dias. Aulas de acompanhamento, digitação (num tempo pré-sms e internet, serviam para rudimentares telefones que transmitiam sinais digitais)…. and so on…
Me integrei rápido. Fiz muitos amigos… Dei meus primeiros beijos… Joguei pelo time de futebol da High School… Mas o inevitável chegou: o momento de voltar para o Brasil. No Brasil, segui minha vida. Terminei o segundo grau. Continuei praticando esportes (jogava handebol e, depois, fui remador). Me formei em Educação Física…
No Brasil, nunca tive a preocupação em contar sobre a minha deficiência para os meus amigos. Apenas os mais próximos sabiam. Não era vergonha. Pelo menos, não no sentido típico que se atribui ao termo. Também não era segredo, se me perguntassem, falaria numa boa. O que eu não queria era ser tratado de forma diferente. Faz alguns anos, porém, incentivado por uma ex-namorada, comecei a agir de modo diferente. Ela me disse: “Eu sei que você está perfeitamente integrado e não precisa disso. Você já tem complexo de Super-Homem (é como ela chamava o fato de eu achar que podia fazer tudo!), mas pense em quantos surdos não tiveram a mesma sorte que você…”.
Fiquei algum tempo ruminando isso. Pensando na sorte que tive. Nos pais e avós que me ensinaram o prazer de ler (sou um leitor compulsivo), no quanto a política educacional de Pittsburgh me permitira ir além… Não teria conseguido me formar, fazer concursos ou ter a vida social que tenho se não dominasse a língua oral. Nem todos têm essa sorte (alguns têm a oportunidade, mas não aproveitam), e resolvi assumir a minha deficiência.
Na época, eu já era servidor público e me preparava para fazer outro concurso. Pela primeira vez, concorri como PNE. Passei e fui trabalhar na Promotoria de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Passei quase dez anos lá e fiz grandes amigos (já repararam que eu adoro fazer amigos, né?). Mas, há cerca de 3 anos, algumas circunstâncias me acenderam o desejo de sair da Promotoria… Comecei a me preparar para fazer concurso para Fiscal de ICMS do RJ.
Ainda no começo da preparação, saiu edital para o concurso de Oficial de Chancelaria do Itamaraty. Nunca havia ouvido falar nesse cargo, mas resolvi procurar na Internet algo a respeito. E… Gostei do que vi! Era justamente o que eu queria! A oportunidade de viajar… conhecer outras culturas… outros idiomas… Redirecionei os meus estudos e passei!
Estou no Itamaraty há dois anos. As funções de um Oficial de Chancelaria são administrativas ou consulares. Ou seja, o OC cuida da administração das embaixadas e consulados do Brasil no mundo, além de lidar com os brasileiros que necessitem de alguma coisa, no exterior, ou estrangeiros que queriam ir para o Brasil. Os diplomatas têm trabalho mais político. A grosso modo, diplomatas lidam com países e Oficiais de Chancelaria lidam com pessoas.
Nunca tive problemas por conta de minha deficiência no Itamaraty e conheço uns 6 PNE’s (3 deles, além de mim, auditivos). E nunca soube de nenhum problema. Esta é uma das coisas mais bacanas, no meu entender, do Itamaraty: tudo muda o tempo todo!! Se não é você que muda de país (e de função), é o seu chefe ou o seu colega. Não tem essa de “chegueimeacomodeietôaquifazend
Os deficientes auditivos que conheço no trabalho não precisam de nenhuma adaptação de acessibilidade, mas os visuais contam com monitores de computador que são verdadeiras televisões, além de outras adaptações. Tenho certeza de que, se eu precisasse, não teria problemas em obter alguma coisa.
Quando criança, ainda em Pittsburgh, fiz experiências com vários tipos de aparelhos auditivos. Tanto os que vão atrás da orelha, quanto uns enormes que se carregava no peito (acho que nem existem mais), mas nunca me adaptei. Por coincidência, conheci um esloveno que também é deficiente auditivo e estivemos conversando a respeito. Ele usa um aparelho top de linha e me aconselhou a testá-lo, uma vez que a tecnologia avançou muito! Mês que vem, vou a uma consulta e, provavelmente, farei um test-drive… Prometo contar a vocês a minha impressão depois!
Inté breve!”
30 Comments
Rayanni
14/10/2013 at 14:20Olá !!
Gostei muito da história , e gostaria de perguntar uma coisa para você. É mais uma dúvida que eu tenho mesmo . Como Oficial de Chancelaria , você muda de país o tempo todo ? ou seja, você não pode ter uma vida fixa no Brasil ? Casar, ter filhos … isto dificultaria muito por conta das constantes mudanças , certo ? Gostaria de ouvir sua opinião sobre isso . Tenho vontade de prestar o concurso , mas penso sempre na possibilidade de montar uma família e como isto se encaixaria em um cargo como este.
Luciana
12/01/2013 at 04:29e Parabéns ao Gilberto,sorte com os aparelhos.
Luciana
12/01/2013 at 04:15Olá,
tô em fase de adaptação com os aparelhos, ta dificil viu, pois aparecem barulhos dos quais eu não ouvi com o aparelho teste…mas enfim…
Eu tenho interesse no concursos para Oficial ou assistente de chancelaria, o meu inglês está péssimo, abandonei os estudos. Mas, vou retomar, pois senti que o isolamento, abandono dos estudos e metas não ajudam em nada. O “Cronicas da Surdez” tem me motivado para não perder o foco.
Alguém sabe sobre: o edital e escola preparatória em são paulo?
Abraços a todos..
Luciana
Leandro Coelho
03/06/2013 at 19:31Luciana, eu acho que o Curso Clio (originalmente do Rio) também abriu filial em SP. Abriu aqui em Brasília tb. Há algumas semanas acho que ví algo sobre preparatório para Ofchan, dá uma sondada. Há também o Curso Atlas que tem muitas aulas telepresenciais, talvez lhe atenda também.
Bons estudos!
LC
Luana
13/12/2012 at 01:51Sou fono, dai que conheço o site. Adoro! Mas li esse artigo pesquisando sobre o concurso de Oficial de Chancelaria. Adoraria conversar com ele. Será que pode ter seu email? Ou meu email ser repassado para ele?
Deficiência auditiva e… futebol americano!!
23/04/2012 at 07:41[…] o mundo é pequeno. Recebi um email do Gilberto (vocês lembram dele, do post sobre a profissão de Oficial de Chancelaria do Ministério das Relações Exteriores) me mostrando um texto super bacana sobre o Paulo Sugai, que é jogador de futebol americano […]
Bruna Cristina
22/11/2011 at 14:41Adorei serve de experiência para as que têm algum tipo de deficiência e acha que tudo estar acabado por não poder fazer alguma coisa em que uma pessoa comum possa fazer.
Adorei.
Claudia
17/11/2011 at 14:27Gil! Achei por acaso esse seu texto e adorei. Espero que o teste com o novo aparelho seja divertido, mas, apesar de não ter ideia do que é ser deficiente auditivo, sei que você é o que é, e ouvir mais ou menos não vai mudar nada.
Parabéns aos seus pais pelo trabalho excelente que realizaram, sabendo dar oportunidades de inclusão social.
Bjs!
Claudia
Gilberto
12/11/2011 at 19:51Obrigado, mais uma vez, gente…
Maria, o concurso do Itamaraty que eh considerado um dos mais dificeis do pais eh para diplomata. Eu sou Oficial de Chancelaria…
Abracos a todos!
Gil
Rafael
10/04/2012 at 14:18Olá Gilberto, tbm tenho perda auditiva bilateral e também pretendo prestar concursos como PNE. Gostaria de saber de você, se você teve alguma dificuldade em ser aprovado na perícia médica do concurso?
Se possivel, gostaria de trocar ideias com vc por email.
Obrigado,
Rafael
beatriz cruz
08/11/2011 at 12:43uau, isso que é história de superação !
parabéns !
Indiara Lira
05/11/2011 at 19:48Uau!!! Sou deficiente auditiva mista de grau severo bilateral
e tenho agenesia bilateral das orelhas. Então, cada dia que
passa me dá mais motivos e alegrias para continuar vivendo
essa vida maravilhosa que ganhei, estudar numa área que amo,
conviver com pessoas incríveis, e procuro sempre melhorar a
cada dia que passa, vencer cada obstáculo que me aparecer. bjos
Teresina/Piauí
Adelaide
04/11/2011 at 14:16Muito me emocionou este relato , prova que a força de vontade e o otimismo
supera toda dificuldade e mostra que todos podem ser felizes e realizados .
Parabéns ! Continue assim com esta força e garra de super homem.
Abraço
Maria
03/11/2011 at 19:35Bem legal a história da vida de sua família. Deu uma invejinha por você saber falar inglês fluente! Foi privilegiado por ter morado nos EUA e ter tido apoio do governo, isso foi fundamental para o sucesso na sua vida. Me disseram que a prova do Itamarity é uma das mais difíceis que tem, isso é mais uma prova da sua garra para buscar o seu objetivo.
A visão das pessoas do exterior sobre as pessoas surdas é completamente diferente daqui do Brasil. A minha vida também mudou graças à visita dos meus pais aos EUA e lá descobriram que eu podia falar. E também fico surpresa com o tanto de leis que existem na Itália que servem para proteger e ajudar os surdos e seus familiares, coisa que não existe por aqui.
Eu falo outros idiomas além de português como alemão e italiano, mas o meu inglês ainda é bem sofrível (só sei ler e escrever) porque não sei como que se fala por não ter regras de pronúncia e a leitura labial é mais difícil ainda porque a impressão que tenho é que as pessoas falam para dentro. Eu não uso aparelho auditivo porque não me adaptei de jeito nenhum e sou mais feliz sem eles. No caso do alemão e italiano é bem mais fácil de entender o que os nativos falam e eles entendiam tudo que eu falava. Já estive nos EUA e Londres e não entendia na-da do que as pessoas falavam. Em Londres entrei em pânico, porque as pessoas da rua vinham falar comigo do nada e eu tinha de explicar que era surda para não parecer mal educada.
Meu sonho é um dia estudar inglês no exterior para melhorar a conversação, o que me deixa com um pé atrás é que não sei se vou ter o apoio que necessito como surda num lugar onde não conheço nada e ninguém! Enfim, um dia conseguirei, é uma das minhas metas da vida!! (alôoo, se alguém tiver alguma dica de um lugar interessante para pessoas como eu, favor me avisar!)
Eu te parabenizo pelas suas conquistas! E nunca tenha a vergonha de surdo e sim tem que ter o orgulho! Porque ela tornou o que você é na vida.
Gilberto
02/11/2011 at 15:15Obrigado pelos elogios, gente…
Este mes vou experimentar os tais aparelhos e prometo contar tudo!
Abracos!
Fabiane Cardoso
01/11/2011 at 22:33Histórias como estas de superação do Gilberto me fazem acreditar que quando acreditamos que com educação, família, amigos e um sonho no coração de vencer o caminhar da vida é mais fácil e prazeroso.Assim por onde quer que andemos deixamos marcar, fazemos a diferença no mundo.E mostramos que todos temos capacidade para vencer.
Não sou surda, mas trabalho com surdos e diariamente promovo discussões com eles sobre essas questões.
Acredito que compartilhando colocamos o amor em movimento e as transformações acontecem.
ABRS
FABIANE CARDOSO/Rio de Janeiro/RJ
Janise
01/11/2011 at 16:34Gilberto, muito lindo o teu relato! Que você continue sempre brilhante! Abraços.
clarissa gomes de sousa
01/11/2011 at 14:08me chamo clarissa, tenho 21 anos, Sou estudante de Direito. Meu sonho é ser diplomata. Tenho perda autiva bilateral de grau moderado. Estou no 5º período ainda, mas pessoas como você me incentivam a seguir em frente e a não desistir.
Obrigado por seu depoimento.
Clarissa- João Pessoa/PB
Rodolpho
01/11/2011 at 11:16Gostei muito dessa história do gilberto.
Esse é aventureiro mesmo: prestando concurso pra tudo quanto é coisa. assim que é bom.
concordo com a paula e com a deni, ou o, agora não sei, mas… concordo com vocês, que os limites são impostos por nós mesmos. e quem não tem deficiência nenhuma, ainda tem muito preconceito com as nossas deficiências.
na verdade, preconceito não, desinformação, as vezes. mas, emfim… era isso. fui! hahaha
Bárbara Maia
01/11/2011 at 09:59Caraaacaa! Adorei esse meninoo. hahahaha Parabéns pra vc e essa família maravilhosa q tem! A vida é feita de superações. Sem superações e aceitações, a vida não anda! Bjos.
Isabel Cristina Zaccaro
01/11/2011 at 09:49Fico feliz por este post estar aqui para nos contar a sua história magnífica!! Parabéns, Gilberto!! =D
Diefani Piovezan
31/10/2011 at 19:39Adorei o relato do Gilberto. Realmente morar em outro país faz toda a diferença, perdi a audição definitivamente quando estava nos EUA e passei muitos anos morando lá, sem AASI (já que não serviam de nada) e lá me sentia normal, me sentia gente como todo mundo, estudava, trabalhava, nunca tive problema algum.
E antes que se pergunte o que diabos vim caçar no Brasil rs, vim fazer o IC e cuidar da saude, coisa que lá é praticamente impossivel se você não for rico.
Crônicas da Surdez
01/11/2011 at 08:53Dief,
A gente reclama horrores do nosso país, mas quando penso sobre quanto custa $$$ ter saúde em outros lugares, meu Deus, arregalo os olhos!
PS: nos EUA o IC é free tambem ou é preciso pagar?
Bjos,
Fernando Maculan
31/10/2011 at 17:07Uauuuuu! Que superação, muito legal mesmo! Parabéns
Crônicas da Surdez
01/11/2011 at 08:53Também achei sensacional a história do gilberto!
Mariana
31/10/2011 at 14:38Parabéns, Gilberto! Uma história realmente inspiradora! E espero que goste do aparelho, depois nos conte qual é o aparelho! Tô querendo trocar, o meu não para de apitar, rs.
Bjs
Deni
31/10/2011 at 13:38São histórias assim que me fazem acreditar cada vez mais na superação do ser humano. Linda história e parabéns ao Gilberto, como também obrigada por compartilhar sua história para que todos vejam, deficiente ou não, que limites são na verdade cada um que se impõe e a superação deles também depende de sua força de vontade.
Crônicas da Surdez
01/11/2011 at 08:54Amei Deni…concordo 200% que nossos limites são impostos por nós mesmos!
Beijos,
s0ramires
31/10/2011 at 09:43Ótima leitura! Parabéns!
Crônicas da Surdez
01/11/2011 at 08:54:**