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Crônicas da Surdez / Deficiência Auditiva / Implante Coclear

Voltar a ouvir: 6 anos de implante coclear sendo Surda Que Ouve

Voltar a ouvir foi um presente inesperado do destino. Já se vão 6 anos de implante coclear – dia 11/11/2019 foi meu aniversário de ativação do primeiro implante. Às vezes olho para trás e parece que foi ontem; em alguns dias a sensação é de que passaram trinta anos voando e nem vi. Quando releio os textos que escrevi em 2013 sobre aquela fase pré-IC, sinto uma enorme nostalgia.

Ontem estive na SONORA, e, conversando com minha fono e com o Luciano, falei que o que mais sinto saudade de 2013 é daquela sensação de estar redescobrindo todos os sons do mundo. Seis anos depois, todos os sons se tornaram banais e o cérebro filtra o que importa. Mas no início, bem no início, o som da caneta passando no papel me fazia chorar, o som do teclado do computador me deixava fungando, o som do ar condicionado me emocionava. É claro que com o passar do tempo tudo é sugado pela rotina, não tem jeito…

Até hoje, o som que tem mais poder sobre mim e que ativa lugares secretos da minha alma é o som do mar. Não tem jeito. Toda vez que ponho os pés na praia (coisa bem rara, mesmo morando no Rio) aquele som potente e poderoso parece me cutucar e dizer: “Ei, você é surda. Você é uma surda que ouve. Aprecie. Seja grata!”.

O IC me devolveu a vida

Se precisasse resumir o que o implante coclear fez por mim, é isso: o IC me devolveu a vida. Depois de 31 anos de surdez progressiva, de isolamento, de sofrimento, de vergonha, de perrengues, de sonhos enterrados, de escolhas equivocadas por causa do silêncio, voltar a ouvir foi um presente inesperado. Totalmente inesperado!

Quem me acompanha por aqui desde o início sabe que eu jamais cogitei voltar a OUVIR e nunca alimentei falsas esperanças quanto a isso. Claro que, como todo mundo, até 2013 eu dava minhas pesquisadas no Google sobre células-tronco (oh, céus da perda de tempo) com um fiapo de esperança de quem sabe ouvir na velhice.

Tenho orgulho de ter sido rápida. Quando o IC apareceu pra mim como uma oportunidade, nem pisquei. Foram menos de 40 dias entre levantar essa possibilidade e sair do centro cirúrgico. Tempo a perder? Não tinha mais. Resíduo auditivo? Até tinha, mas não servia para nada. Coragem? Sempre sobrou por aqui. Medo? Muito, mas a chance de ser vencida por ele era zero.

Lembranças

Seis anos depois, o som que eu mais gostaria de ouvir jamais vou ouvir outra vez: a voz da minha mãe. De 11/11/2013 até 17/03/2016, pude me deliciar – e me irritar também – ouvindo o som que eu mais amava nessa vida. Ah, voz de mãe. Isso é algo que a gente só entende a dimensão depois que perde.

Relembrar tudo o que passei nesses seis anos invariavelmente é puxar a dona Tizi de volta pra cá. Quem tenta se virar com um luto mal resolvido, como eu, sabe como é difícil. Aquela fase pré-IC foi o tempo em que mais ficamos grudadas. Muitas noites dormimos de mãos dadas nos hotéis de Porto Alegre, ansiosas pelo próximo dia, o próximo exame, a próxima consulta. Incontáveis vezes pegamos a estrada juntas ouvindo música no último volume – eu, totalmente surda, e ela, quase ficando pra me acompanhar…

Erros

Sendo o mais honesta que posso ser, meu grande erro nessa jornada foi não ter feito o implante bilateral na mesma cirurgia. Entretanto, não fiz unicamente por medo do desconhecido e porque estava apegada à vida que eu conhecia: surdez profunda, aparelho auditivo, leitura labial. Achava que aquilo podia ser considerado ouvir alguma coisa, e fui entender que não no dia da ativação do primeiro IC.

É claro que não dá pra considerar esse um erro brutal. Longe disso. É mais arrependimento do que erro. Em 2016, fui para a fase II da minha jornada, após a morte da mãe. Sabia, lá no fundo, que queria ter a minha família. E também sabia que depois que tivesse um filho, só entraria para a faca se realmente precisasse. Foi a hora certa de ressuscitar o ouvido esquerdo.

Abelhas

Lembro de voltar para casa após a ativação do IC 2 com uma abelha zunindo na minha cabeça. E aquele barulho horroroso não dava trégua. Qualquer som que ouvisse, vinha junto um “ZZZZZzzzzZZZZ”. Na primeira semana, queria atirar o processador pela janela. Em alguns dias, nem usava o IC.

Fiquei um tempo irritada. Outro recomeço. Outra adaptação. Dois ouvidos que precisavam se entender. Uma abelha que precisava sumir da minha vida. Um tremendo cansaço mental somado à expectativa de todo mundo: todos os dias, toneladas de mensagens e emails perguntando sobre minha evolução.

A minha expectativa no IC 2 foi muito equivocada. Por algum motivo sem noção, achei que seria rápido, fácil, simples. Afinal, o ouvido direito tinha sido um sucesso. Voltar a ouvir com o ouvido esquerdo foi uma das maiores lições de humildade forçada que já vivi – e olha que não foram poucas nessa vida. Ele foi lento, custoso, chato, cansativo e, mesmo que hoje em dia as audiometrias dos dois ouvidos sejam quase idênticas, o som que entra do lado esquerdo não tem a clareza e o volume do som que entra do lado direito.

Mas, querem saber? Está tudo bem! Juntos, eles funcionam que é um espetáculo, o esquerdo complementa demais o direito. E perfeição não existe, ainda mais quando estamos falando de surdez.

Aprendizados

É bem difícil listar os maiores aprendizados nesse em que vivo como surda que ouve. Mas o exercício de fechar os olhos – e no caso também os ouvidos, pois estou escrevendo esse texto num escritório super barulhento e tirei os ICs para me concentrar – e pensar sobre isso vale o desafio.

Todos querem ser ouvidos:

Depois que voltei a ouvir percebi que todas as pessoas, sem exceção, querem ser ouvidas. Os ouvintes que nos rodeiam são surdos, no sentido figurado. Pare e pense se as pessoas do seu convívio próximo realmente te escutam. Todo mundo quer falar, opinar, gritar, se expressar. Todos querem desesperadamente que alguém os ouça de verdade.

Ouvir de verdade é raro:

Fato! Conto nos dedos de uma mão as pessoas que me ouvem, que me olham nos olhos (e não no celular) enquanto falo. Que estão realmente interessadas em perder uns minutos da própria vida abrindo os ouvidos para o próximo.

O silêncio é um luxo:

Ser surda que ouve é o supra sumo do luxo, minha gente. Quando o mundo está muito barulhento, quando estou em situações nas quais posso me desligar, quando não sou obrigada a ouvir ruído chato e barulho inútil….eu desligo sem só nem piedade.

Os ouvintes ainda não sacaram a surdez:

É impressionante como as pessoas que ouvem ainda não absorveram a gravidade do crescimento dos números globais da surdez. As pessoas não cuidam da própria audição, basta entrar num metrô e ver 99% do povo usando fones de ouvido nas alturas. Não fazem a menor ideia dos malefícios que qualquer grau de perda auditiva causará nas suas vidas. E realmente acham que a surdez jamais será uma realidade para elas. Eu só lamento. E não me entendam mal, não estou rogando praga para ninguém. Mas é preciso encarar a realidade: a população hoje vive muito, e se você não perder audição porque não cuida dela, vai acabar perdendo com o passar do tempo.

Um dá a mão pro outro:

Me arrepio toda quanto lembro a corrente do bem que vocês fizeram quando decidi que ia fazer o primeiro IC. Foi uma onda de amor e de torcida, foi tão lindo, tão intenso, tão arrebatador. Ter compartilhado tudo aqui mês a mês, viagem após viagem, ano após ano, conquista após conquista, criou outra corrente do bem. Um deu a mão para o outro, encurtou o caminho e iluminou a jornada do outro, encheu o outro de coragem. O resultado desse movimento de generosidade não podia ser outro, milhares e milhares de Surdos Que Ouvem por esse mundo afora.

O mais emocionante de tudo

É ouvir meu filho de quase dois anos gritando “Mamãeeeeee” pela casa. Quando olho pra ele percebo tudo o que a surdez profunda iria me roubar se eu não tivesse tipo o ímpeto de sair da prisão na qual ela me enclausurava. Afinal, todas as coisas legais que me aconteceram vieram depois que o som voltou a fazer parte do meu dia-a-dia. Desafios profissionais, a coragem de largar um emprego público que eu detestava, mudar para o Rio de Janeiro, ser mãe, virar palestrante, conduzir um projeto de U$1.000.000 em prol da reabilitação auditiva.

Um conselho após 6 anos como Surda Que Ouve

Seja rápido e certeiro na busca pela reabilitação auditiva e desista da tentação de querer garantias ou de comparar o seu caso com o de qualquer outra pessoa. A surdez é como uma impressão digital. Se as pessoas com deficiência auditiva transformarem a tecnologia na sua grande aliada e transformarem os aparelhos auditivos/implantes nos seus melhores amigos, só tem a ganhar com isso. Qualidade de vida, oportunidades, um leque de opções à sua frente. A tecnologia amplia os nossos caminhos em infinitas direções. Façamos uso dela!

About Author

Paula Pfeifer é uma surda que ouve com dois implantes cocleares. Ela é autora dos livros Crônicas da Surdez, Novas Crônicas da Surdez e Saia do Armário da Surdez e lidera a maior comunidade digital do Brasil de pessoas com perda auditiva que são usuárias de próteses auditivas.

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