Por Carla Rigamonti, psicóloga
A proposta de escrever um texto sobre o “baque pós IC” (termo proposto pela Paula Pfeifer) me pôs a pesquisar em artigos científicos resultados de adultos que fizeram o implante coclear. A pesquisa foi interessante, uma vez que não chegou perto de responder à nossa pergunta. Além disso, em momento algum encontrei informações sobre esse período posterior ao implante coclear que faz com que a decisão seja revisitada e torne possível questionar sobre a efetividade e as mudanças causadas pelo implante coclear.
Digo isso, pois de acordo com as pesquisas científicas, o implante coclear para adultos pós- linguais tem efeitos consideráveis na qualidade de vida e na discriminação de fala. Acredito ser de especial interesse pontuar os melhores resultados relacionados ao impacto na qualidade de vida em adultos que já faziam algum tipo de reabilitação auditiva anterior ao uso do dispositivo (uso esse termo porque me refiro a um artigo em que foram observadas mudanças de qualidade de vida em usuários de prótese auditiva e de implante coclear)[1]. Nesse ponto, é importante associar a frequência em uma terapia de reabilitação ao investimento do paciente em melhorar sua qualidade de comunicação, o que me parece estar intimamente associado à forma como se lida com a surdez, tanto em relação à elaboração da perda de uma percepção sensorial como também quanto à aceitação desta perda. A partir disso, podemos compreender a aceitação e a elaboração da perda como motores na busca de tratamento anterior ao implante coclear, o qual implicaria em melhores resultados na qualidade de vida pós-cirurgia.
Quando coloco variáveis psicológicas, como a aceitação da surdez e o luto de uma posição de sujeito ouvinte, pretendo tornar mais complexo o nosso problema, pois não podemos ignorar os impactos próprios da perda. Destaco aqui uma frase da própria Paula, em seu post “Sobre as grandes decisões que tomamos na vida”: “Quando pequena, lembro de ser serelepe, espoleta, extrovertida, corajosa, louquinha, e à medida em que fui perdendo a capacidade de ouvir, tudo isso foi indo embora junto. Sinto saudade daquela pessoa!”. De fato, a perda auditiva afeta a comunicação, o que nos liga ao mundo: quando temos nossa capacidade de se comunicar reduzida ou dificultada vemos nossas relações pessoais e profissionais abaladas. Encontrei um depoimento muito interessante a esse respeito de uma usuária de implante coclear: “…Eu tive que fazer o luto pela perda da minha audição e percebi o quanto isso me mudou em termos que eu já não era capaz de ser tão sociável, espontânea, afiada, tão alerta às relações sociais (…) então inicialmente o que acontece, que é surpreendente, é que as pessoas não reagem da mesma forma e eu me vi desinvestindo. Era mais fácil para mim não sair e falar com as pessoas e socializar, não sair como um casal ou com grupos de amigos…”[2].
As adaptações depois da perda auditiva são, portanto, muitas, e tratam de uma forma de estar no mundo e de relacionar que não é mais possível. Temos assim, duas opções de tratamento na atualidade. O uso da língua de sinais ou a busca por uma reabilitação que enfatize os aspectos orais da comunicação: leitura orofacial, uso de prótese auditiva (sendo ou não candidato ao implante coclear) e terapia fonoaudiológica com ênfase na fala. Vou me deter à essa segunda possibilidade e propor mais uma diferença que considero fundamental: o tempo de privação auditiva, ou seja, o tempo entre a perda da audição e o uso do implante coclear. Faço essa escolha justamente porque a Paula, em seu pedido, enfatizou o quanto se perde enquanto se é surdo, ou ainda, o que ela poderia ter feito e vivido se tivesse feito o implante coclear antes. Será essa uma questão comum a todos que tomam mais tempo para decidir pelo implante coclear?
Considero como psicóloga o quão angustiante deve ser tomar uma decisão de vida que faz com que todas as anteriores sejam revistas: que trabalhão psíquico! Mas, também como psicóloga, pontuo aqui a importância do tempo e da elaboração da surdez, além do investimento em uma terapia fonoaudiológica, como condições fundamentais para que o implante coclear seja colocado não como uma “solução” (a maior das expectativas), mas como uma forma alternativa de ser surdo. Explico: me parece que, se a Paula não tivesse elaborado o luto daquela menina serelepe, e encontrado alternativas e formas novas de se relacionar no mundo, talvez ela não se surpreendesse de forma tão positiva com o implante, justamente por ele ser colocado nessa posição de resgate de tudo o que ela poderia ter sido. Mas a Paula não pode mais ser aquela menina… Então, o que ela pode ser? Essa construção de uma nova forma de se comunicar deve sim ter suas raízes no que desejamos ser um dia, mas não deve pretender ser exatamente o que se perdeu. Porque o que se perdeu já não pode ser mais o que era.
Ainda sobre a questão da deficiência auditiva em adultos, encontrei um relatório recém-elaborado sobre o custo da perda auditiva na Inglaterra[3]. Além de visar o impacto econômico do não investimento no acesso às tecnologias auditivas, esse documento propõe que seja feito um programa de triagem auditiva com adultos, pensando no impacto da perda auditiva quanto aos seus efeitos nas relações sociais, pessoais e profissionais. E então, me encontrei pensando: em qual tipo de programa social podemos pensar na abordagem de adultos que buscam o implante coclear? No presente artigo a proposta foi, justamente, pontuar os efeitos psicológicos, que podem também ser cuidados pensando na melhor qualidade de vida.
Eu devolvo, assim, a seguinte pergunta: quais as sugestões dos adultos já implantados para programas que trabalhem com candidatos ao implante coclear? Existe algo possível de pontuar, que tenha feito muita falta, ou que tenha feito uma diferença positiva/ negativa muito grande em seu processo dessa escolha, uma das grandes escolhas da vida?
[1] Cohen SM, Labadie RF, Dietrich MS, et al. Quality of life in hearing-impaired adults: the role of cochlear implants and hearing aids. Otolaryngol Head Neck Surg 2004 Oct; 131(4): 413-22. Grade B.
[2] Archbold S, Lamb B, O’Neill C, Atkins J. The real cost of adult hearing loss: reducing its impact by increasing access to the latest hearing technologies.
[3] Idem.
3 Comments
inês laborinho
20/01/2015 at 14:49Carla, você pode contactar-me através de imisal@hotmail.com
inês laborinho
25/11/2014 at 12:59Sou surda pós-linguística e «tardia» – a perda auditiva inicial foi súbita, aos 42 anos e depois flutuante e progressiva, sobretudo num dos ouvidos, já que no outro ainda tenho alguma audição: em 6 anos evoluí de uma perda moderada a severa para uma perda profunda. Aguardei 2 anos pelo IC, fui ativada há 1 ano e 2 meses e fiz terapia de fonoaudiologia durante cerca de um ano, 2 vezes por semana, o que considero fundamental para a compreensão dos sons, em particular o da fala, via IC.
Apesar de curto o tempo em que estive sem IC, acho que ainda estou a tentar recuperar disso, desse isolamento a que me senti confinada e das limitações que acabaram por existir. Acho que me desabituei de conversar, é-me ainda difícil saber, durante uma conversa com mais de uma pessoa, quando posso «tomar a vez» (se bem que quando ouvinte essa dificuldade também surgia, o tomar a palavra é muitas vezes uma afirmação pessoal), se o outro parou ou apenas está a recuperar o fôlego, perceber exatamente a entoação e a questão do uso da ironia, se não for acompanhado de algum exagero ou de expressão orofacial indicativa de tal, o modular do «volume» da minha voz. Curioso é também o fato, natural,de os outros, que me conhecem, já não estarem habituados às minhas intervenções nas conversas!
A questão do telefone é o meu maior trauma, confesso, e ainda não consegui ultrapassá-lo, continuo a ter «dores de barriga» quando sonho em telefonar a alguém, e sem cabo audio é muito complicado ainda, acho que mais por insegurança minha. Poder treinar conversas ao telefone, na terapi,a seria bem útil, no meu caso não aconteceu.
Uma coisa que me ajudou muito durante a terapia foi o poder conversar abertamente com a terapeuta (fonoaudióloga, aí no Brasil, eu sou portuguesa)sobre os sons que ia percebendo ou não com o IC, devido ao fato de eu ter formação em Linguística, e também porque ela se dispôs a isso.
Acho que ainda nem tive bem tempo de pensar bem sobre tudo o que me aconteceu na fase pré-implante e nesta já com o IC. Ganhos, muitos, obviamente, na comunicação com os outros e na perceção do mundo em que vivo, o que me dá mais autoconfiança e me faz sentir mais segura, portanto mais autónoma.
Cheguei a fazer um trabalho de mestrado sobre o impacto da surdez súbita nos adultos jovens, que me ajudou a perceber muito do que me aconteceu e me abriu horizontes sobre formas diferentes de tentar viver com essa perda auditiva brusca. Acho que hoje, talvez, me interessaria estudar esse recuperar da audição! 🙂
Um abraço e obrigada pela abordagem de tantos assuntos pertinentes para quem vive com surdez.
carla
20/01/2015 at 10:30olá Inês
Brevemente vou fazer meu IC, tenho prótese auditiva no ouro ouvido que me ajuda na minha vida diária.
Sendo você de Portugal podia fornecer-me algum email para eu poder trocar impressões consigo, não é que com as pessoas dos outros países não possa, mas fica mais fácil por proximidade. Neste momento estou em estado “medo”.
Obrigada