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Crônicas da Surdez / Implante Coclear / Maternidade / Não categorizado

MÃE com DEFICIÊNCIA AUDITIVA: relato dos medos e desafios de uma mãe surda

Falamos muito sobre as mães de crianças com deficiência auditiva por aqui. Mas e quando a mãe é a pessoa que tem deficiência auditiva? Demorei muito tempo até decidir que queria ser mãe, e isso só aconteceu depois que voltei a ouvir e a confiar nos meus ouvidos biônicos para garantir minha própria segurança. O mundo é barulhento e tudo pode acontecer num piscar de olhos, e quando você opta pela maternidade está se dispondo a cuidar de outra vida com mais cuidado do que cuida da sua.

Eu sentia muito medo da ideia de ficar sozinha com um bebê sem escutar praticamente nada, como era até 2013. A cabeça ia para longe imaginando uma série de acidentes que poderiam acontecer. O único jeito que um recém-nascido conhece para se comunicar é o choro, e, a não ser que você tenha companhia em casa 24hs, precisa contar com a audição para ouvir o seu filho. Hoje a tecnologia já ajuda bastante, com babás eletrônicas vibratórias, câmeras e outras ferramentas que nos ajudam a monitorar as crianças. 

Quando a vontade realmente ficou forte, tive que decidir se faria o segundo implante coclear. Cheguei à conclusão de que queria oferecer ao meu filho a minha melhor versão, e isso significava ter dois ouvidos biônicos antes dele nascer. Se tivesse feito o IC esquerdo após o seu nascimento, teria que envolvê-lo na recuperação da cirurgia e na minha adaptação (só quem já passou por  isso sabe que a gente sente vontade de arrancar os cabelos e o humor fica azedo pra caramba). A possibilidade de nunca mais fazer a segunda cirurgia depois de ser mãe era grande, também- e o medo de entrar para a faca com um pequeno para criar e alguma coisa dar errado? Por isso, em junho de 2016, operei o ouvido esquerdo. Depois que me senti 100%, meses depois, é que levei a cabo a ideia de engravidar e, em setembro do ano seguinte, descobri que estava grávida do Lucas.

Estou falando da MINHA experiência e dos receios que EU tinha até bater o martelo sobre a maternidade. 

Medos e sustos de uma mãe surda

Antes do Lucas nascer, parei e pensei sobre os meus medos a respeito de ser uma mãe surda. O primeiro medo tinha a ver com o parto, pois eu queria ouvir a chegada do meu filho ao mundo e meus implantes caem das orelhas quando deito a cabeça na cama/travesseiro. Resolvi isso usando um IC de peça única que peguei emprestado para usar na hora da cesariana. Foi emocionante ouvi-lo assim que saiu de dentro da minha barriga.

O segundo medo tinha a ver com não conseguir identificar os tipos de choros do bebê. A falta de experiência e de rede de apoio (minha mãe e sogra faleceram em 2016 e não tenho família no Rio) me obrigou a seguir a tática da tentativa-erro-acerto quando Lucas era bebê. Chorou? Tento água. Checo a fralda. Vejo se é fome ou sono. E sempre deu certo, apesar da insegurança inicial.

O terceiro medo era o de não conseguir me adaptar de jeito nenhum a dormir usando implante coclear, afinal, foram 37 anos dormindo no silêncio e amando esse luxo. Esse medo foi superado rápido, por força das circunstâncias e pura falta de escolha. Quando você tem um filho, a prioridade é ele, e todo o resto passa a ser secundário, inclusive você e seus medos e frescuras, rsrsrs.

Vivi meu primeiro pânico real como mãe quando Lucas tinha uns 9 meses. Nós estávamos no escurinho do quarto dele, ele estava no meu colo sonolento e dei uma mamadeira. Dei muitas mamadeiras de madrugada sem estar usando implante coclear, e o Luciano sempre brigava comigo por isso e dizia que eu precisava estar ouvindo nesse momento por questão de segurança. Eu revirava os olhos e, podre de cansada, continuava levantando feito zumbi de madrugada e não colocava os implantes, porque era mais uma coisa para fazer. Dessa vez, graças a Deus, eu estava usando os ICs, e graças a eles ouvi e identifiquei em um segundo que Lucas estava se afogando com o leite da mamadeirae não estava conseguindo respirar! Fomos parar na emergência pediátrica pela primeira, levei um susto horrível, passei horas tremendo de nervoso e aprendi do pior jeito a lição: mãe surda tem obrigação moral de usar seu implante coclear ou os seus aparelhos auditivos enquanto cuida do seu bebê para não colocar em risco a segurança do seu filho. Não gosto de imaginar o que poderia ter acontecido se eu estivesse no escuro sem ouvir quando ele se afogou com o leite; eu poderia ter notado o que estava acontecendo tarde demais.

O desenvolvimento da linguagem

A melhor coisa que fiz por nós dois foi ter dois implantes cocleares antes dele nascer, porque isso me permitiu acompanhar o desenvolvimento da sua linguagem de outra forma. Sentia pânico quando pensava na possibilidade de não entender o que meu filho falasse, afinal, se entender o que uma criança que está aprendendo a falar diz já é difícil para os ouvintes, imagine para uma mãe surda.

Ouvindo bem, consegui acompanhar cada salto de desenvolvimento linguístico, cada palavra, tudo. Hoje sou expert em ler os lábios do meu pequeno e consigo entender muito do que ele diz se estiver sem os ICs, como quando saio do banho, por exemplo, ou quando ele me cutuca no meio da madrugada ao pé da cama.

Lembro de ler, no passado, o depoimento de um filho ouvinte de pais surdos que precisou morar com os avós para desenvolver a fala. Aquela reportagem ficou marcada em mim e me ajudou a perceber que eu me sentia na obrigação de resolver minhas pendências auditivas antes de tentar ser mãe. A indicação do IC bilateral eu já tinha, o primeiro estava feito e faltava fazer o segundo. Ele não era fundamental, mas era uma pendência, e, além disso, fazê-lo poderia melhorar ainda mais a minha voz e a minha audição. Eu poderia ter encontrado mil motivos para fugir disso, e acabei encontrando o maior motivo de todos para ir em frente: eu imaginava como seria ser mãe com IC unilateral e o IC pifar, e também imaginava o que diria ao meu filho quando ele me perguntasse, no futuro, porque é que não fiz o que deveria ter feito.

Ser mãe e surda que ouve me deu a chance de entender a complexidade do desenvolvimento da linguagem de uma criança e a magia envolvida na neuroplasticidade nos nossos primeiros anos de vida. É realmente mágico observar o seu filho aprender a se comunicar e a reconhecer os sons do mundo.

E se o meu filho for surdo?

Durante a gestação, perdi algumas noites de sono pensando: “E se meu filho nascer surdo?”. As pessoas não paravam de me perguntar a mesma coisa em mensagens inbox no Instagram, e isso me deixava péssima porque é uma pergunta invasiva e idiota. Toda mãe que tem uma deficiência imagina se o seu filho também terá essa deficiência, especialmente quando ela é de causa desconhecida, como a minha surdez.

Se Lucas tivesse nascido surdo, teria a sorte de ser membro de uma família com vasta experiência no assunto: mãe surda que ouve, pai otorrinolaringologista. Estaríamos preparados para isso de antemão, o que nos ajudaria bastante. No dia em que ele fez o exame BERA em casa (com a Dra. Norma Fidalgo) eu me sentei no sofá e fiquei olhando para o além com as pernas tremendo de nervoso. Nada mais natural, afinal, eu não queria que o meu filho nascesse com deficiência auditiva e tivesse que enfrentar todos os desafios que eu enfrentei e enfrento ao longo da vida por causa dela. Não tenho nenhum problema em dizer isso, apesar de não ser politicamente correto – engraçado que ninguém questiona nem julga as mães que rezam para que seus filhos nasçam com a mesma deficiência que elas, mas isso é assunto para outro post.

Lucas é ouvinte e faz uma audiometria anual de controle, como todas as crianças deveriam fazer para garantia a saúde auditiva. Mantenho ele longe de fones de ouvido e mando abaixar o volume da TV e do tablet sempre que acho que o som está alto. Ele falou sua primeira palavrinha: “nenê”, ao se olhar no espelho, apontando o dedo para si mesmo e dando risada. Hoje, aos 4 anos, fala sem parar, a ponto de eu precisar pedir silêncio repetidamente quando estamos juntos.

Os desafios 4 anos depois

Acabamos de voltar de uma viagem na qual o alarme de incêndio do hotel nos Estados Unidos tocou dentro do quarto pedindo para que todos descessem imediatamente pelas escadas até o térreo. Lucas ficou super assustado, mas deu tudo certo porque eu estava ouvindo quando tudo aconteceu (Luciano estava no banho na hora). Essa experiência reforçou a importância da audição para garantir a nossa segurança. É muito raro que um quarto tenha aviso luminoso de alarme de incêndio (o nosso não tinha). Imagine se eu estivesse sozinha, no banho, e ele com algum fone de ouvido nas alturas vendo tablet! Conversei bastante com o Lucas depois e expliquei o quanto ele precisa prestar atenção a todos os sons sempre, já que a mamãe é surda. 

Quando brincamos juntos eu tenho mania de fingir que estou assustada por causa de algum barulho e pergunto: “Você ouviu isso?”. Ele sempre me olha com cara de tédio e responde “é só o barulho da rua, mãe” , “é um barulho de moto, mãe”, “é barulho da casa do vizinho, mãe!”. Ele ainda é pequeno, então vive esquecendo que sou surda quando estou no banho ou quando estamos no escuro. O pequeno quer que eu esteja sempre ouvindo-o, e às vezes me acorda com o implante na mão e já me entrega antes que eu levante da cama.

Nosso desafio hoje é que ele estuda numa escola bilíngue na qual o francês é a primeira língua, a qual ele está aprendendo a falar. Esses dias fui na escola e fiquei espantada ao ver como Lucas já compreende tudo o que a professora diz e responde as perguntas que ela faz em francês. É estranho como a surdez me atinge nessas horas, porque, à medida que o tempo passar, o fato de eu não falar francês vai ser um buraco entre nós. Posso até aprender, mas nunca terei a pronúncia que ele terá. Isso me faz lembrar de quando o meu enteado mais novo me pediu ajuda com os deveres há alguns anos. Ele precisava que eu lesse um texto em voz alta. Tirei o meu parco francês enferrujado da gaveta e fiz o que pude. A expressão dele foi impagável, e seu comentário, mais ainda: “Você está falando tudo errado!”. É inevitável que, no futuro, em muitas situações eu seja a criança, e meu filho, o adulto. Mas não perco mais o meu tempo pensando nessas coisas. Conversamos muito sobre os implantes da mamãe, sobre como ficar atento aos sons, como falar de frente para mim, como respeitar quaisquer próteses que os colegas e amigos usem e tudo o mais que vai surgindo no dia-a-dia.

Não me sinto mais infantilizada pela surdez, mas ela me assombra nos mais diferentes momentos. Vou deixar abaixo um relato da minha primeira ida à escola para vocês entenderem melhor. Essa semana vou lá com meus bonecos #SurdosQueOuvem explicar um pouco aos pequenos do maternal sobre como é não ouvir e usar aparelhos auditivos. Perguntei ao Lucas o que ele acha disso e tive que ouvir “mãe, só não me chame de fedorento na frente dos meus colegas tá?”

Os filhos nos ensinam que não controlamos nada, apesar da gente gostar tanto de achar que é capaz disso…

 
 
 
 
 
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About Author

Paula Pfeifer é uma surda que ouve com dois implantes cocleares. Ela é autora dos livros Crônicas da Surdez, Novas Crônicas da Surdez e Saia do Armário da Surdez e lidera a maior comunidade digital do Brasil de pessoas com perda auditiva que são usuárias de próteses auditivas.

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