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Crônicas da Surdez

Perder alguém para a obesidade MÓRBIDA: relato pessoal

Você imagina como é perder alguém para a obesidade? Minha intenção com esse post não é julgar ninguém, mas sim contar uma história. A minha história. Minha mãe faleceu em 2016, por culpa da obesidade mórbida, que veio cobrar a contaPara quem acha que obesidade é algo super ok, aconselho assistir a este vídeo. Eu sou absolutamente contra toda e qualquer glamourização da obesidade e lamento muito a forma irresponsável como a mídia trata desse assunto.

Esse post foi originalmente publicado em 2016, no meu antigo site Sweetest Person.

A obesidade da minha mãe: como tudo começou

Quando meu irmão nasceu, minha mãe engordou. Depois disso, por um tempo, oscilou na gangorra da dieta: ora encarava o dragão e perdia todo o peso que precisava, ora ganhava tudo de novo. Mais perdia do que ganhava, e em algum momento desistiu de tentar.

Alguns meses antes dela morrer, encontrei uma foto nossa: eu de patins com uns 10 anos, meu irmão jogando bola e ela nos vigiando, de camiseta e legging, pesando uns 65kg. Lembro de olhar a foto e pensar: ‘o que aconteceu que a a mãe não permaneceu assim?

Não tenho lembranças nossas em atividades ao ar livre, correndo, praticando esportes e coisas do tipo. Quando criança, eu queria muito fazer essas coisas. Ela nunca queria porque teria que caminhar. Ficava cansada, ofegante, suada. Precisava sentar em algum lugar 5 minutos depois.

Me entristecia o fato da mãe não se esforçar pra vencer a guerra contra a balança, não perceber como a gente desejava estar com ela de um jeito ativo e como nos machucava ela não querer voltar a ser a mulher ativa e presente que sempre foi. Estar acima do peso nunca trouxe nada de bom nem para a vida dela, nem para a nossa. Nós crescemos aprendendo a nos alimentar mal e nunca tivemos o exemplo dos exercícios físicos em casa.

E assim foi, até que o tempo passou.

Em 2009, a mãe completou 50 anos. Fomos juntas a Buenos Aires e as fotos são ótimas. Ela estava bem acima do peso, mas nós caminhamos horrores pela cidade. Gastamos bastante sola de sapato por quilômetros, dando risada, nos divertindo, aproveitando o momento. Foi tão bom e fui tão feliz naqueles dias. Ela também. Eles são a lembrança mais bonita nossa juntas que tenho. Voltei de lá pensando no quanto queria viajar com ela pelo mundo inteiro, pois quando estávamos só nós e ela estava bem de saúde e de espírito, nada poderia ser mais legal.

Quando tudo desandou: a obesidade cobrando a conta

Em 2010, íamos nos encontrar no Rio de Janeiro. Peguei uma ponte aérea e, ao chegar em Congonhas, achei esquisito aquela mulher numa cadeira de rodas que era tão parecida com a minha mãe. Olhei mais de perto e…era ela. Me contou rindo que o joelho estava doendo (era tudo sempre culpa “do joelho” para ela) e achou mais fácil ser empurrada numa cadeira do que caminhar.

Em 2011, completei 30 anos. Fomos juntas para o Chile. Aí, o bicho pegou.

Comparando as fotos, não sei dizer quanto peso ela ganhou em dois anos. Ela praticamente não saiu do quarto na viagem. ‘Ah, minha filha, to com dor no joelho, pode ir que vou ficar aqui’. Se mexer um pouco era um suplício. As raras vezes em que saímos, ela já entrava numa loja e pedia uma cadeira para se sentar porque não aguentava ficar em pé. Pior que isso só quando íamos ao shopping e ela pedia uma daquelas cadeiras de rodas elétricas para ‘caminhar’ sem esforço. Minha mãe era jovem, tínhamos apenas 21 anos de diferença de idade.

Em 2012, levei minha vó para uma viagem de um mês pela Europa. A mãe ficou furiosa porque não a convidamos. Eu expliquei: como alguém que fica mal ao subir um lance de escadas pode achar que consegue fazer uma viagem de 30 dias que requer horas de caminhadas diárias? Era preciso ser realista: missão impossível. Ela concordou, porque sabia que não havia a menor condição de ficar caminhando por aí e não tínhamos verba para ficar circulando de táxi em euros.

A obesidade e a independência

Ela me pedia ajuda para inúmeras coisas, como vestir um sapato, colocar um sutiã, alcançar algo que estava no chão. Quando a gente ia se arrumar pra sair, era um parto: só de vestir a roupa e se ajeitar, minha mãe começava a suar como se estivesse no deserto. Tudo era um perrengue, difícil e custoso.

O elefante branco estava ali, e não podíamos falar sobre ele.

Se você coloca dois filhos no mundo tem obrigação de zelar pela própria saúde. Mas convencer uma pessoa de que ela precisa emagrecer e está destruindo a si mesma é uma das tarefas mais difíceis que existem. Especialmente hoje em dia, quando tudo é considerado ‘gordofobia’ e a mídia aplaude a obesidade mórbida como se fosse algo a ser celebrado.

Os filhos enxergam a obesidade mórbida dos pais como egoísmo, não como doença. Como diria Ayn Rand, “podemos ignorar a realidade, mas não podemos ignorar as consequências de ignorar a realidade”. Minha mãe, infelizmente, achava que podia fingir que nada estava acontecendo.

Obesidade e compulsão

Assisti a minha mãe comer sentimentos durante 34 anos. E sentimentos têm muitas calorias, que acabam grudando na alma da pessoa e não vão embora nunca mais.

Nunca vi minha mãe sentar e comer um churrasco, uma super feijoada, ou comer até passar mal. Ela tomava muito refrigerante com açúcar, comia muita bolacha recheada, salgadinhos, bombons e todas as porcarias possíveis. Alimentação saudável nunca foi pauta lá em casa, pelo contrário. Seu programa favorito era jantar fora em algum buffet livre, comendo sem pressa.

A gente brigava muito por causa da obesidade

A mãe era baixinha e a parte do corpo dela que mais crescia era a barriga. Eu dizia: ‘Mãe, perde essa barriga, parece uma terceira pessoa!‘. Às vezes, ela ria e me prometia que faria isso; às vezes, ela me xingava e ficava três dias sem falar comigo.

Ver a minha mãe enorme me incomodava demais, porque era um lembrete físico de como ela estava por dentro: doente, triste e infeliz.

Não lembro como, mas uma vez a convenci a ir num cardiologista. Ela foi, mas não me deixou participar da consulta, fiquei no carro esperando. Quando acabou, entrou no carro aos prantos, tremendo, e prometeu que a partir daquele dia seria outra pessoa. Ela nunca me contou o que o médico disse na tal consulta. E também nunca cumpriu a sua promessa. Passou algumas semanas comendo alimentos saudáveis, perdeu algum peso e logo abandonou o objetivo de ter saúde outra vez.

A redução de estômago

Implorei diversas vezes que ela tentasse a redução de estômago. Minha madrinha fez a redução, emagreceu, ficou bem – mas nem isso animou a mãe de tentar.

Um belo dia percebi que havia chegado num ponto em que não sentia mais vontade de brigar com ela sobre algo que não era da minha alçada. Ela era a obesa, ela se alimentava mal, ela mentia para si mesma, ela não enxergava o óbvio, ela enfiava a própria saúde no lixo,. Passei a vida tentando salvá-la, e não consegui.

Ela nunca quis, não dependia de mim.

Mas não vou mentir, ainda carrego essa culpa: podia ter insistido mais, feito uma intervenção, levado à força ao médico. Se tivesse pegado pesado, talvez ela ainda estivesse aqui. É doído pensar nisso.

“Olha aquela gorda de biquini”

No verão de 2008, estávamos na piscina do clube, quando umas crianças fizeram um comentário que ela ouviu: ‘Mas olha só aquela gorda de biquini!‘. Na hora, deu um sorriso amarelo constrangido mas, depois, chorou muito.

Acompanhei quase 3 décadas de obesidade da minha própria mãe.

Levei incontáveis vezes para o pronto-socorro quando a pressão subia. Fiz muitas coisas sozinha porque ela estava cansada ou com dor. Acompanhei milhares de frustrações banais como o anel que não entrava, o zíper da bota que não fechava, a calcinha GGG que ficou pequena, a roupa de festa que não existia.

Ela sofria, e eu sofria junto. Ela negava, eu escancarava, a gente batia boca. Quando a pessoa passa do ‘gordinha’ para o ‘obesa’, a auto-enganação começa: ‘Meus exames de sangue estão ótimos’, ‘Está tudo bem comigo’, ‘Sou gorda mas não tenho nenhum problema de saúde’, ‘Eu me amo e me aceito do jeito que sou’, ‘Posso morrer atropelada na esquina, não vou morrer porque estou gorda’, ‘Não há nada de errado com a minha saúde’. Só que não. Tudo mentira.

As limitações da obesidade

Quem convive com a pessoa conhece TODAS as limitações trazidas pela obesidade, que vão do joelho às costas, os sapatos que não entram, pressão alta, taquicardia por quaquer coisinha, suador interminável, necessidade de estar sempre sentado ou deitado, caminhar praticamente se arrastando, não conseguir vestir uma roupa ou fechar um sutiã, e a lista pode continuar por mais 300 itens.

Olhar as fotos do meu casamento me machuca mais do que qualquer coisa: não reconheço minha mãe nelas.

Ela estava tão inchada no rosto que parecia outra pessoa. Aliás, nesse dia, ela quase não participou da festa: levou um tombo no quarto tentando calçar o sapato sozinha e não queria descer para cerimônia por causa da dor. Fui pro bar do hotel, pedi um uísque e fiquei rezando pro tempo passar e ela estar lá, pra não correr o risco de não tê-la por perto no meu dia mais importante. Ela estava lá, mas não levantou da cadeira em nenhum momento. Aquilo me entristeceu e me irritou muito, também. Só conseguia pensar: como ela não percebe que assim não dá mais?

Ah, eu estou bem. Ah, eu me gosto assim. Ah, ser gordo não é problema, me deixem em paz. 

O golpe final da obesidade

Levei minha mãe para o hospital dia 10 de junho de 2015, direto para a UTI. Ela faleceu dia 18 de março de 2016 após longos meses de UTI e CTI.

Foi tipo uma gestação ao contrário: durante 9 meses, vi o minha mãe definhar, emagrecer forçadamente e perder todos os músculos do corpo sem nunca mais conseguir recuperá-los. A obesidade mórbida e o sedentarismo cobraram a conta de décadas de abusos com juros e correção monetária.

No velório, não vou mentir, senti muita tristeza: aquele corpo magrinho não precisava ter sofrido tanto. Justo eu, que sempre achei que perderia minha mãe para um ataque cardíaco fulminante, tive que enterrá-la com 60kg. Aquilo acabou comigo.

Não fazia sentido. Por que ficou 9 meses presa em cima de uma cama perdendo todo aquele peso? Só tivemos esse tempo extra juntas porque ela nunca fumou e nunca bebeu.

As tristezas da obesidade

Alguns dias depois da morte dela, decidi arrumar os armários para doar as roupas e tudo o mais. Foi então que descobri que minha mãe sempre fez compras para a pessoa que queria voltar a ser, jamais para a pessoa que era. Encontrei uma infinidade de botas de salto alto lindíssimas, jamais usadas. Encontrei vestidos tamanho M ou G, todos com etiqueta. Aquilo me doeu bem fundo. Quem era mesmo que se gostava do jeito que era? Quem era mesmo que não estava nem aí de ser obesa?

Desde que ela se foi, só apareceu nos meus sonhos magra. E sorrindo.

E, de alguma forma, isso me conforta e me traz alguma paz. Nos sonhos, ela me olha, linda que só, com a aparência que tinha aos 21 anos. Espero que esteja assim, leve e feliz, onde estiver. Chega de peso, de sobrepeso, de obesidade, de cansaço, de falta de ar. A obesidade mórbida me tirou tão cedo a pessoa que eu mais amava.

Perder alguém para a obesidade é desumano. Com quem vai, também com quem fica e com quem viveu as limitações junto, em vida.

Essa é a minha história. Só queria mostrar pro mundo como é a dor de ser filha de alguém que desiste da própria saúde, e que finge que não enxerga os incontáveis prejuízos físicos e emocionais trazidos pela obesidade. Fica a reflexão.

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About Author

Paula Pfeifer é uma surda que ouve com dois implantes cocleares. Ela é autora dos livros Crônicas da Surdez, Novas Crônicas da Surdez e Saia do Armário da Surdez e lidera a maior comunidade digital do Brasil de pessoas com perda auditiva que são usuárias de próteses auditivas.

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