A história da descoberta de como percebi que minha audição se tornara ruim certamente é parecida com a muitas outras pessoas que escutavam bem e começaram a perceber que havia algo errado. O volume da TV aumenta, as pessoas começam a receber pedidos para repetir palavras e frases, a confusão com a identificação de sons se torna aflitiva e o zumbido se instala para nunca mais ir embora. Quando nos damos conta, já descemos boa parte da ladeira rumo a surdez severa.
Da aceitação da perda de audição à procura de ajuda demora algum tempo. No meu caso, não muito. A compra e o uso de aparelhos auditivos também ocorreram de modo mais ou menos rápido, uma sorte da qual muitos não compartilham. Aceitei com tranquilidade todo esse processo talvez por estar, na época, próximo dos 60 anos, quando alguns problemas de saúde surgem ou se tornam mais agudos. Foi suave. O mais difícil veio depois, quando já usava os aparelhos auditivos e tentava levar a vida normalmente.
Quer dizer, mais ou menos normalmente. Médicos e fonoaudiólogos dizem que usar equipamentos que permitem minorar os problemas de audição é como usar óculos – ajudam a enxergar melhor, mas passam longe de fazer você voltar a ter uma visão perfeita. De fato, ouve-se melhor, o que é importante para evitar a exclusão social. Meu pai, hoje com 91 anos, passou boa parte da velhice escutando muito mal. Cansei de vê-lo à mesa apenas observando filhos, noras, cunhados e netos conversando animadamente, entendendo apenas parcialmente o que falávamos. O mesmo ocorria com meu sogro, de 96 anos. Por anos, o vi em reuniões familiares completamente alheio das conversas por ouvir muito mal. Só depois dos 80 anos eles passaram a usar aparelhos de audição. Houve uma clara melhora da socialização de ambos.
Essa situação retrata um tipo de exclusão – involuntária e silenciosa, mas ainda assim, exclusão. Não são todos que percebem a dificuldade daqueles que estão com a idade muito avançada. A surdez é encarada, muitas vezes, apenas como desinteresse do surdo pelo convívio social. Não notar nem se interessar por essa dimensão do problema é outro erro daqueles que convivem com idoso que ouve mal. Há outras dimensões, ainda mais graves. Hoje é consenso entre pesquisadores e médicos estudiosos dos vários tipos de demência que a surdez é um dos fatores que contribuem para a deterioração cognitiva, ao lado da idade avançada e da baixa escolaridade.
À medida que a consciência da própria surdez cresce, surgem outras chateações. Uma delas é que o som ao qual se estava acostumado a ouvir, desde sempre, parece diferente, inclusive com o uso constante dos aparelhos auditivos. Para quem aprecia música, incluindo a instrumental, sem letra, tudo fica um pouco mais confuso. No início, eu culpava os aparelhos eletrônicos (TV, rádio, Alexa, CD player) pelo som ruim. Aos poucos, entendi o óbvio: se eu perdia sons e palavras quando falavam comigo por que seria diferente ao escutar música?
Minha surdez foi diagnosticada como bilateral leve há três anos. Quando descobri, por meio de buscas sobre o tema na internet, o admirável trabalho da Paula Pfeifer – que gentilmente me convidou a escrever este relato – identifiquei-me imediatamente com a expressão “surdos que ouvem”, que dá título ao site e canais das mídias sociais criados por ela. É assim que me sinto. Antes de usar os aparelhos, eu ouvia menos; com eles, ouço mais. No entanto, continuo entendendo o que é dito de modo limitado se comparado com antes. Sou surdo, mas ouço.
Depois dessa descrição, creio ter deixado claro que minha surdez não é nenhum bicho de sete cabeças. A principal razão desta narrativa é uma questão um pouco mais difícil de exprimir. Por que não consigo explicar como é o som que chega para mim? Um exemplo prático: eu pensava que não conseguia ouvir direito o som grave. Até que minha fonoaudióloga me alertou que a audiometria mostra que escuto bem os graves. Será então que não escuto direito os agudos? Já não sei dizer. Agora, quem me diz o que escuto corretamente são os testes de audição. Minha percepção tornou-se falha, cheia de buracos. Perdi alguma coisa pelo caminho e não creio que a recuperarei.
Se a dificuldade fosse descrever o que não ouço, seria fácil porque, se não escuto, não há o que descrever. O problema é especificar o que escuto mal. Como soa o som da palavra não entendida? Sempre acho que o som da TV sai abafado ou mascado, por exemplo. O som do rádio do carro parece excessivamente metalizado. Isso é o que eu acho, mas não sei se de fato é assim. Não consigo ter certeza. Com essas informações incompletas, cheias de dúvidas, a conversa com médicos e fonos fica difícil porque meus relatos são altamente imprecisos e dificultam até a regulagem dos aparelhos auditivos.
A exceção é quando escuto músicas pelo celular via bluetooth, conectado aos aparelhos auditivos. Ai sim, fica bom. O som é despejado diretamente no canal do ouvido e me sinto de volta aos bons tempos da audição límpida, com pouca distorção. Essa agradável sensação vale para conversas e entrevistas ao telefone usando bluetooth. Entendo muito bem. Se acabam as pilhas do aparelho e me vejo obrigado a falar com o celular no ouvido, o som e o entendimento pioram. Se você é jornalista, como eu, o esforço por entender o que é dito pode ser mentalmente exaustivo, dependendo de como o interlocutor fala.
As relações familiares são outro ponto de encontro com as dificuldades. Se há uma sequência de sons que não entendo e peço repetições, sobrevém uma pequena irritação. A palavra ou a frase é repetida, escandida em um tom alto e irritadiço. Já me foi dito que estou distraído ou desinteressado do que vem sendo falado. Não adianta dizer que há outros conversando ao mesmo tempo ou que a pronúncia não foi suficientemente clara ou, ainda, que o som chegou, mas não foi decodificado pelo cérebro. Nem sempre o contexto é suficiente para completar o entendimento. Quando se perdem palavras e frases durante uma conversa, é desagradável pedir a repetição de tudo para um grupo de pessoas, especialmente jovens, que falam rápido. É melhor deixar passar para não interromper o fluxo da conversa. Quando alguém pergunta algo relativo ao que foi dito e você não sabe responder, pensam apenas que não estava prestando atenção.
Também não há nenhuma noção de parte dos ouvintes normais de como pode ser cansativa a concentração para acompanhar conversas (às vezes, mesmo as familiares) e reuniões profissionais, de modo a não perder o que é dito. A sequência de “ahn?”, “como é?”, “repita, por favor”, “não entendi” irrita qualquer um. Com arrependimento, lembro da exasperação que sentia com meu pai quando eu era o cara que escutava tudo e ele o surdo que me forçava a repetir as frases. Hoje, aos 61 anos, recebo de volta a mesma impaciência que tive com ele.
Provavelmente escrevi demais sobre situações já conhecidas pelos membros do CLUBE dos Surdos Que Ouvem e vejo que o texto tem o tom de lamento. A intenção não foi essa. A ideia aqui é tão somente contar o que mais tem me incomodado com relação à lenta perda de audição: a incapacidade de classificar os sons que escuto mal. Por que diabos não acho palavras para isso? Elas me fazem muita falta. Talvez outros sintam o mesmo.
Neldson Marcolin
SP, 02/01/2025
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