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Aparelhos Auditivos / Deficiência Auditiva / Surdez

Surdocegueira: o relato de uma pessoa com Síndrome de Usher

A surdocegueira ainda é um assunto pouco explorado. Gostaria de compartilhar com vocês minha experiência sobre um assunto que “mexe” com algumas pessoas com deficiência auditiva  – seja ela parcial ou total, seja ela oralizada ou sinalizada: muitos surdos têm medo do contato com as pessoas surdocegas.

Sim! Mas… Calma!

Antes de mais nada, acho importante esclarecer alguns conceitos! Meu nome é Ana Lucia Perfoncio, já contei minha história no Crônicas da Surdez.

O que é surdocegueira?

O que determina se um indivíduo tem DEFICIÊNCIA VISUAL é o quanto de acuidade e campo de visão que ele possui e isto tem que ser de acordo com os parâmetros determinados por lei e também pelos médicos.

Uma pessoa pode ser totalmente cega ou pode ter resíduo visual, ou seja, enxergar parcialmente, uma condição conhecida como “baixa visão”.

Mesmo com dificuldades, ela é potencialmente capaz de executar a maioria das tarefas e geralmente utiliza lentes de aumento como lupas, por exemplo.

Alguns se locomovem com o auxílio de bengalas. Encaixo-me nesta categoria, pois tenho SÍNDROME DE USHER, uma doença genética que é caracterizada pela surdez e pela perda gradativa da visão (retinose pigmentar). Sou oralizada e usuária de aparelhos auditivos, logo sou surdocega.

Deficiência multissensorial: CEGUEIRA e surdez

Embora possa parecer que surdocegueira e a deficiência visual e/ou a DEFICIÊNCIA AUDITIVA compartilhem muitas das mesmas características, existem diferenças profundas entre elas.

Um exemplo, e provavelmente o mais importante em relação ao contexto da educação, é que sendo um indivíduo com deficiência multissensorial, a privação do uso dos seus sentidos espaciais, fará com que ele processe informações de maneira diferente do aluno cego e/ou surdo, e, portanto, as estratégias para obter resultados também são diferenciadas.

A expressão “surdocegueira”, escrita sem separação, é a mais correta e serve como substituta para “surdez e cegueira” porque percebeu-se que junção dessas duas palavras deu mais clareza e definiu a condição como uma deficiência única.

Medos e dificuldades na comunicação

Nestes anos que convivo com a minha Síndrome de Usher, tive contato com muitos cegos, indivíduos de baixa visão e deficientes auditivos de todos os graus.

E pela minha experiência, percebi que alguns surdos são os que mais tem medo do contato com surdocegos, embora eu também conheça deficientes visuais que ironicamente também temem o mesmo pela surdez.

Sabemos que os surdos dependem em grande parte do sentido da visão para se comunicar, isto tanto para sinalizados que usam Libras, quanto para oralizados, em que a maioria faz leitura labial.

O dilema é: “O que seria deles se no futuro fossem afetados com a falta da visão? Como seria a comunicação?”

Estes e outros pensamentos podem vir mais à tona principalmente quando um indivíduo com perda auditiva tem contato inicial com uma pessoa com surdocegueira.

Trata-se de um “medo inconsciente”, pois muitos sentem a sua própria vulnerabilidade, porque já convivem com a surdez e saber que também é possível que um ser humano possa ser surdo e cego ao mesmo tempo, faz com que aconteçam pensamentos como: “Isto não pode acontecer comigo!”

Vimos que a questão não é só medo, mas também por causa da comunicação.

Cada pessoa com surdocegueira tem seu grau de perda auditiva e visual que requer formas de comunicação específicas, portanto, cada uma tem seu método próprio em que se adequou, para se comunicar a fim de melhorar sua capacidade de viver de forma independente.

Como conversar com uma pessoa SURDOCEGA?

Para desenvolver seu próprio meio de conversa, o surdocego precisa utilizar seus sentidos remanescentes como olfato, paladar e tato, além de usar (se tiver) seus resíduos auditivos e visuais.

O período em que aconteceu a perda da audição e da visão também é importante, como por exemplo, uma criança com esta condição na primeira fase escolar, pode ter dificuldades ou atrasos para entender o que está acontecendo ao seu redor.

Isso significa que pode afetar no processo linguístico e outras áreas do desenvolvimento como comunicação, mobilidade e aprendizagem, portanto quanto mais cedo for diagnosticada, melhor.

Então, por exemplo, quando um surdo sinalizado tem contato inicial com uma pessoa com surdocegueira usuária da LIBRAS (geralmente são os que já dominavam a língua de língua de sinais e perderam a visão por determinados motivos) o impacto é grande e causa estranhamento.

Neste caso, a forma de comunicação mais usada é a libras tátil que é realizada com a mão do interlocutor e por sua vez é interpretado. Mas isto nem sempre é aceito.

Um amigo surdocego me contou que quando colocava a mão para comunicação tátil, alguns surdos se afastavam rapidamente… “Eles agem como que a surdocegueira fosse contagiosa”.

Algumas pessoas podem ter uma aversão à conversa pelo tato, mas quanto mais conviverem e se comunicarem, mais vão aceitando.

Muitas vezes alguns surdos oralizados, ou bilíngues, acham muito difícil se adaptar às necessidades de alguém com perda visual e auditiva simultânea, independentemente da forma de comunicação que eles usam. Tudo pode ser resolvido com mais tempo de contato, facilitando assim a interação entre eles.

Comunidades, culturas e diversidade entre SURDOCEGOS

Como sabemos, existe diversidade entre pessoas surdas, assim como entre cegas.

Os surdocegos também têm sua própria cultura composta por um grupo de indivíduos que passaram por experiências semelhantes. Apesar das diversas formas de comunicação, alguns veem sua condição como parte de sua identidade.

Você provavelmente não reconheceria uma pessoa surdocega, é até compreensível porque a surdocegueira, por ser uma deficiência relativamente desconhecida, torna difícil o reconhecimento com base na aparência física.

Muitos não são usuários de próteses auditivas e também não usam bengalas comuns e nem tão pouco as mescladas em branco e vermelho (cores que representam pessoas surdocegas).

É difícil também encontrar alguém que tenha as mesmas características quanto ao grau de perda auditiva e visual.

Aliás, uns se identificam mais como “surdos” e outros como “cegos” …

Portanto, não se trata da quantidade de visão e audição que o indivíduo tem, e sim sobre o “impacto” que isto causou a esta pessoa por ter mais de um comprometimento sensorial e ela procura ver qual condição que se identifica mais.

Convivendo com a SURDOCEGUEIRA

Embora haja dificuldades em aceitar esta condição, não são todos que têm aversão e medo dos contatos com pessoas surdocegas!

Existem situações em que nos sentimos acolhidos. A acessibilidade está se tornado cada vez mais humanizada. Isso a passos lentos, mas temos razões em acreditar que podemos ter uma qualidade de vida melhor. Hoje temos as tecnologias dos aparelhos auditivos e também os implantes cocleares que podem ajudar na reabilitação auditiva e, é claro, tudo envolve acompanhamento de equipes multidisciplinares para incluir o surdocego na sociedade.

Quando fiquei sabendo do meu diagnóstico da Síndrome de Usher, eu tive que encontrar forças, porque, por enquanto, essa síndrome não tem cura. Não sabia o que seria do meu futuro, é algo que não dá para prever quando posso ficar mais surda ou perder totalmente a visão… De todas as formas, eu procurei e anda procuro conviver com ela da melhor forma possível!

Esta síndrome me deu uma certeza: é Usher e não algo pior!

Existem pessoas surdocegas ou até mesmo surdos ou cegos que possuem outros tipos de deficiência, isto é, são deficientes múltiplos, e alguns casos são debilitantes, o que dificulta ainda mais a socialização, a inclusão, a comunicação.

Mas não pense que um surdocego é menos feliz em função da falta de visão e da audição: ele pode trabalhar, estudar, casar, divertir-se, participar de eventos sociais, etc… da mesma forma de alguém sem deficiência.

O fato de eu ter a Síndrome de Usher não é fim do mundo. Digo isso para quem também tem deficiência auditiva e/ou visual: podemos ter suporte para nos adaptarmos e tirarmos o lado positivo disto.

Devemos ser encorajados para certas mudanças no nosso cotidiano.

A surdocegueira faz uma diferença real em nossas vidas, contudo, assim mesmo podemos levar a vida normalmente.

Para minimizar o medo…

O que podemos fazer é aumentar a conscientização sobre a surdocegueira.

Esclarecer que é uma condição muito peculiar, cada um com suas particularidades, suas limitações…

Seria surpreendente se nós todos fôssemos “iguais”, se nossas vidas fossem muito semelhantes, mas não são. O que temos que fazer é aceitar as diferenças e respeitar as diversidades, sejam surdas, cegas e/ou surdocegas. As mudanças podem ser significativas, existem sim dificuldades, mas a adaptação é necessária.

Se todos conhecessem mais a respeito da audição e também sobre a visão, poderiam ajudar a minimizar o medo da surdocegueira e sem dúvida não haveria limites para o espírito humano.

Ana Lucia Perfoncio

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About Author

Paula Pfeifer é uma surda que ouve com dois implantes cocleares. Ela é autora dos livros Crônicas da Surdez, Novas Crônicas da Surdez e Saia do Armário da Surdez e lidera a maior comunidade digital do Brasil de pessoas com perda auditiva que são usuárias de próteses auditivas.

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