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SURDEZ E DIABETES: relato de estudante de Medicina surda

Me chamo Melissa Jones, sou mais conhecida como Pâncreas de Mel, ou Mel. Mineira de Belo Horizonte e tenho 22 anos. Sou diabética tipo 1, estudante de Medicina e sou uma surda que ouve.

Sempre estudei em um dos colégios mais difíceis de Belo Horizonte, aquele que tinha um alto número de aprovações no ENEM e estampava o rosto dos alunos na porta do colégio no início do ano letivo, sempre acompanhado por um: UFMG, USP, UNICAMP… A pressão por nota alta desde o fundamental I era parte da rotina, e a alta competitividade entre os alunos também. Foi o ambiente em que cresci, guardo um orgulho de ter estudado ali, mas também péssimas lembranças, não vou mentir…

O diagnóstico de diabetes tipo 1

Sempre fui muito esperta, desde criança, mas foi em 2012 que tudo começou, aos 11 anos de idade. Desde que me entendo como aluna, me sentei na frente, nas primeiras cadeiras, gosto de estar perto do professor, de ser amiga dele e ter essa relação mais próxima. Coisas estranhas começaram a acontecer como: as pessoas que se sentavam no fundão me chamavam em sala e eu não ouvia, a minha calopsita cantava em casa e eu via o bico dela abrindo, mas nada saia dali, alguém atendia o interfone e eu não entendia o motivo dessa pessoa atender um interfone que nem sequer estava tocando. Eu me deitava para dormir e sentia como se tivessem mil passarinhos cantando no meu ouvido, mas tudo bem, dava para seguir assim…

No final de 2012 tive uma virose terrível, não conseguia nem sair da cama, minha mãe pensou que era por eu estar estressada com o colégio, já que não estava indo muito bem em Matemática. Foi a partir desse dia que comecei também a emagrecer, comer muito, beber muita água, perdi 15kg em dois meses. No início de 2013 minha mãe desconfiou que havia algo errado comigo e me levou em uma Endocrinologista. Foi aí que tive meu primeiro diagnóstico: diabetes tipo 1.

Junto com esse diagnóstico, comecei a passar por longos períodos de bullying no colégio, as pessoas sabiam que eu não ouvia se me chamassem quando eu estivesse de costas, ficavam durante a aula me testando e me chamando, riam quando eu não olhava, e isso se repetia todos os dias. Uma professora chegou a chamar meus pais lá me dando um diagnóstico de TDAH…

Nunca cheguei a ser excluída, sempre tive muitos amigos, mas havia muitas piadinhas em cima do fato de eu não ouvir. No fundo eu sentia que tinha algo errado, mas não queria assumir para os meus pais, já estava pesado demais dar conta da carga de tomar sete injeções por dia por causa do meu diabetes, se recebesse um segundo diagnóstico naquele momento meu mundo ia desabar.

A desconfiança sobre a surdez…

Em 2013 estava no 7º ano do fundamental, passei com notas altíssimas em todas as matérias, descobri que o livro didático era meu melhor amigo, estava também começando a aprender a fazer leitura labial e nem sabia disso….

Mudei de colégio e cidade em 2014, minha mãe achou que estava muito estressada com o dia-dia pesado do outro colégio. Permaneci tirando notas altas na nova escola, mas sempre sofrendo bullying de outras pessoas, sempre a mesma coisa: sabiam que eu não ouvia se me chamassem quando eu estivesse de costas, ficavam durante a aula me testando e me chamando, riam quando eu não olhava. Falavam que eu era lerda e mil outras coisas do tipo. E eu ignorava, continuava fingindo de distraída por sobrevivência: não poderia ter mais um diagnóstico, eu não daria conta. Viver dessa forma era mais fácil para mim.

Foi em 2014 que as pessoas começaram a reclamar que não estavam entendendo nada que eu falava e que eu falava “dublando”, era o meu sotaque de surdo começando a aparecer.

O professor que encaminhou para a fonoaudióloga…

Em 2015 quis voltar para BH, tinha decidido que queria cursar Cinema e Audiovisual e ser Diretora de Cinema, para isso teria que começar a fazer teatro e na cidade que estava morando não tinha cursos de teatro profissionais. Voltei para Belo Horizonte, para o mesmo colégio,  e comecei a fazer um curso de teatro – mal saberia que seria ele que me salvaria, que salvaria minha comunicação e não me deixaria ter medo de falar, mesmo falando com sotaque de surdo.

O professor de teatro me encaminhou para uma fonoaudióloga para melhorar minha dicção, e não, ela não me deu um diagnóstico. Fiz fono por anos, sem usar os aparelhos auditivos. Chegou uma hora que não dei conta do curso de teatro, precisamos prestar muita atenção em 360º, e eu só conseguia prestar atenção em quem estava na minha frente, estava viciada em leitura labial. Fiz várias apresentações no Chevrolet Hall, de 2015 até 2018, antes de desistir de vez de fazer Cinema.

O diagnóstico de surdez

Em 2018, ano do meu vestibular, decidi que faria Medicina. Afinal, antes de cogitar fazer Cinema, havia passado na minha mente cursos como: Veterinária, Ciências Biológicas, Biomedicina, sempre amei a área de biológicas e da saúde. Eu continuava passando por os bullyings, mesmo com quase 18 anos de idade, mas ele vinha de uma forma mais branda nessa época, teve um amigo que chegou a falar para mim que era meu “charme” não ouvir e ter sotaque de gringo.

Eu já tinha amadurecido bastante nessa época e decidi que era a hora de saber a verdade sobre o porquê eu não ouvia bem. Até então, para minha família, eu não ouvia pois sempre estava muito focada no que fazia, sempre gostei muito de ler e pesquisar, então para eles eu entrava no “universo” do que eu estava fazendo e ficava ali. Um dia acordei e pedi para minha mãe me levar a um  médico Otorrino, quis entrar sozinha na sala do médico e comentei com ele que as pessoas me chamavam e eu não ouvia, fui bem direta.

Ele me levou para a sala ao lado e começou a fazer uma audiometria, eu não levantava a mão de jeito nenhum. Foi aí que ele abriu a porta e berrou: “VOCÊ NÃO OUVE NADA”.

Eu estava engolindo tudo, já esperava que isso ia acontecer, mas não de uma forma grotesca como foi. Ele fez mais um pedido de audiometria, eu saí daquela sala e nunca mais voltei. Hoje, como estudante de medicina, lembro muito desse episódio que passei, como um exemplo de péssima relação médico-paciente.

Entrei no carro com minha mãe e desabei a chorar, ela não estava entendendo nada e eu soltei um: “Eu perdi uma parte da minha audição” – já tinha perdido há muito tempo e ela não sabia…

Fiz audiometria novamente e tive um diagnóstico de uma perda auditiva neurossessorial, bilateral, profunda nas frequências agudas e o grave preservado. Sem causa aparente, uma médica quis culpar a todo custo o meu diabetes, sem embasamento científico nenhum. Isso me causou uma ansiedade enorme e me fez procurar um Endocrinologista renomado aqui em Belo Horizonte que depois de alguns estudos junto com um Otorrino amigo dele, descartaram o fato da minha perda auditiva ser uma complicação de diabetes.

O começo com os aparelhos auditivos

Naquela época meu avô tinha falecido de câncer, ele usava aparelhos auditivos, e de forma rápida, eu peguei os dele e reajustei segundo minha perda. Fiquei uns meses com os aparelhos dele e depois compramos aparelhos novos, bem tecnológicos, com bluetooth. Lembro da emoção que foi ouvir minhas músicas preferidas pela primeira vez com os sons agudos que não ouvia antes. Ir para Búzios e ouvir o som do mar foi lindo, e emocionante.

Minha reabilitação auditiva foi ótima, tinha e tenho até hoje prazer em colocar os aparelhos, estudo ouvindo música com eles, uso o MultiMic para me auxiliar nas atuais reuniões que tenho nos meus projetos da faculdade. A amplificação dos agudos foi feita de forma gradativa para que meu cérebro se adaptasse da forma menos estressante possível e para que ele tivesse o tempo dele para tornar aquele som o mais natural possível.

A faculdade de Medicina

Fiz cursinho EAD por dois anos durante a pandemia, com a tecnologia do MultiMic me ajudando a ouvir as aulas online, e logo depois passei em Medicina, fui aprovada em quatro faculdades de Belo Horizonte. Escolhi a Faculdade de Minas de BH, FAMINAS-BH. Foi a melhor escolha que poderia ter feito, tinha muito medo de chegar em um novo local e ser recebida por pessoas capacitistas ou sem noção, como foi o que vivi na minha vida até então. Quando fiz a matrícula, marquei um horário para conversar com a coordenação e falar por alto da minha perda auditiva, mas ainda estava com vergonha de comentar com as pessoas sobre isso.

Primeiro dia de aula, no primeiro semestre de 2022, todo mundo ainda de máscara, sentei ali e o desespero bateu. Ainda estava no armário da surdez, não conhecia ninguém, não estava entendendo nada que os professores falavam. Só vinha na minha cabeça: “Putz, o que eu inventei, não vou dar conta!”.

Logo no final da primeira aula eu me levantei e fui até a professora, cutuquei ela e falei baixo: “Eu sou surda, ninguém aqui sabe – apontei pra sala toda – tô com medo de não entender nada que vocês falam.”. Gente, ela olhou pra mim como se fosse a coisa mais simples de resolver, tirou a máscara dela e falou: “Pois eu é quem não vou dar aula de máscara, até a gente conseguir a máscara transparente eu vou te ajudar, vou dar aula sem máscara para você fazer leitura labial! Já tive uma aluna surda na outra faculdade e hoje ela é formada em medicina, vai dar certo!”

Eu saí da aula com um quê de esperança, fui da faculdade até em casa pensando sobre o que eu faria, bolando planos para conseguir passar por cima das máscaras e entender pelo menos alguma coisa que os professores falavam, pois tinha medo de entrar em uma bolha da surdez novamente. Foi aí que eu arquitetei um plano de fingir que tinha aceitado meu diagnóstico de surdez e lidar da maneira que lidava com o diabetes: com autoconfiança. E tive a ideia de usar o MultiMic nos professores.

Saindo do armário da surdez…

Cheguei no outro dia falando para o pessoal que para falar comigo tinha que abaixar a máscara pois só entendia com leitura labial, peguei meu MultiMic e colocava nos professores no início das aulas, e fui falando de uma forma extremamente natural, fingindo costume com tudo aquilo. Até que chegou um momento que eu já estava falando abertamente sobre minha perda auditiva na faculdade, sem vergonha nenhuma. Tirava o aparelho auditivo e mostrava para o pessoal curioso. Minha autoaceitação acorreu naqueles meses, de forma natural, leve e espontânea e logo depois dessa virada de chave, a mágica aconteceu.

Fiz amigos extremamente respeitosos comigo, são quase que meus tradutores, são super pacientes e dispostos a aprender a se comunicar comigo. Os professores se atentam em dar aula sempre na parte da frente da sala para que facilite a leitura labial para mim, alguns até param a aula para perguntar se está dando para compreender bem. Minha maior dificuldade é nos laboratórios pois dá eco, mas sempre tentamos adaptar o aparelho e peço para o professor ficar na minha frente. Na sala de simulação, coloco o MultiMic no meio da mesa de atendimento.

Nunca sofri capacitismo na faculdade, sempre fui recebida de uma forma linda. Mas acredito muito que isso aconteceu pois eu eduquei as pessoas, eu as ensinei a comunicar comigo e elas se abriram para receber essas informações e ficaram curiosas para entender melhor sobre como eu vivia com essa perda auditiva.

Estou atualmente no 3° período, semestre que vem início a matéria de Semiologia do Adulto na qual precisamos de usar o estetoscópio, pesquisava sobre os estetos há anos, antes mesmo de pisar na faculdade, quando estava no cursinho. Descobri o estetoscópio digital da Littmann, foi paixão a primeira vista. Pedi para uma prima trazê-lo para mim dos EUA, quando chegou fiquei igual criança brincando com ele, testando nos meus pais. Sou muito grata por essa tecnologia que temos, por todas as tecnologias que temos na verdade, que nos auxiliam a ouvir o mundo, e no caso do esteto, nos auxiliam a ouvir o universo que acontece dentro dos pacientes.

Logo quando eu o recebi, gravei uns vídeos e o pessoal da minha faculdade viu, todos adoraram, vejo tudo isso como uma forma de levar uma visão leve sobre minha surdez, uma visão descontraída e que pode ter suas partes legais também, nunca romantizando pois não é fácil conviver com uma deficiência, mas mostrando que podemos ser felizes e que hoje, em pleno século 21, temos muitas inovações em nossas mãos.

Creio que existem muitas crenças limitantes sobre a surdez, sobre várias condições de saúde na verdade, inclusive o diabetes. Muitas pessoas pensam que não somos capazes – aí entra o capacitismo. Ou que somos fodas por darmos conta, mas na verdade é sobre isso: ensinar as pessoas que precisamos sim de ajuda as vezes, coisa que já tive muito orgulho para pedir, afinal fiquei anos e anos escondendo a surdez sozinha. Ter uma rede de apoio em nossa volta é um dos pilares mais importantes. Mas antes de tudo isso, a autoaceitação tem que vir de dentro de nós, devemos acreditar em nós mesmos e não ficarmos inseguros seja lá qual for o motivo. É algo que tenho aprendido muito nesse último ano como acadêmica, me peguei insegura de não ouvir ou entender um paciente, de não conseguir medir uma pressão arterial corretamente por não ouvir tão bem, e adivinhem: quando pedi para o professor me ajudar, eles me disseram que havia conseguido corretamente.

O processo de autoaceitação, amor-próprio e autoconhecimento é uma escada, e devemos subir um degrau por vez, no nosso tempo. Assim como a adaptação aos aparelhos auditivos e implante coclear, não é uma linha reta e constante, é uma linha cheia de altos e baixos. E costumo a dizer que a própria vida é cheia de altos e baixos, igual o exame cardíaco, que quando está retilíneo, não há vida…

Inclusive, foi na faculdade que fiquei mais curiosa para entender o motivo da minha perda auditiva, que nunca foi esclarecido e é a incógnita da minha vida. Conversando com vários professores levantei hipóteses de ser autoimune, igual o meu diabetes tipo 1. Hoje já sei que minha perda auditiva não é consequência do diabetes, mas pode ter ocorrido pelo mesmo motivo, a autoimunidade.

Foi um refrigério estar em um local como a minha faculdade, com meus amigos e professores compreensivos. Por isso, deixo esse conselho para você, como diabética e como surda que ouve: ninguém nasce sabendo lidar com uma diferença, mas as pessoas podem aprender, e cabe a nós ensiná-las.

Surdez e Diabetes no Instagram: siga @pancreasdemel

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About Author

Paula Pfeifer é uma surda que ouve com dois implantes cocleares. Ela é autora dos livros Crônicas da Surdez, Novas Crônicas da Surdez e Saia do Armário da Surdez e lidera a maior comunidade digital do Brasil de pessoas com perda auditiva que são usuárias de próteses auditivas.

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