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Viajante Biônica: #surdosqueouvem em Genebra

Como vocês sabem, fui a Genebra com a Dani Kraus na semana passada para participar da reunião do Core Committee do World Hearing Forum – o Fórum Mundial da Audição da Organização Mundial de Saúde. Passei dois dias na sede da OMS compartilhando vivências e conhecimento com stakeholders dos quatro cantos do mundo que também estão envolvidos até o pescoço com a promoção da prevenção da surdez e da reabilitação auditiva.

Viajar com outra surda que ouve foi o ponto alto da viagem. A Dani é 100% dedicada ao nosso movimento desde que entrou nele, é moderadora voluntária do grupo há anos e uma das pessoas mais maravilhosas que eu já conheci desde que comecei o Crônicas da Surdez. Parece até que é minha irmã mais nova! Tivemos a oportunidade de conversar por longas horas todos os dias a respeito de todos os assuntos possíveis, desde a cultura da nossa comunidade de #surdosqueouvem até como manter a saúde mental – e física – em dia quando somos bombardeadas com perguntas em todas as redes sociais quase 24hs.

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Nós duas num trem suíço com destino a Montreaux, cidade na beira do Lac Leman na qual passamos um dia visitando o Château de Chillon e o estúdio do Queen.

Forum Mundial da Audição

O World Hearing Forum atualmente é composto por pouco mais de 150 membros dos mais variados países, sendo os Estados Unidos o país com o maior número de representantes. É uma iniciativa liderada pela Dra. Shelly Chadda – quem lembra da participação dela no nosso maravilhoso Conexões Sonoras Online? Aliás, se você não assistiu, já deixo o vídeo de presente abaixo. Não perde. O tema central desse evento foi mostrar surdos que ouvem que ocupam posições de liderança em grandes companhias de tecnologia do mundo.

As primeiras impressões

No primeiro dia eu não consegui disfarçar meu entusiasmo com a acústica perfeita da sala que, somada à acessibilidade em todas as paredes, me permitiu estar 100% presente compreendendo o que era dito. Para onde eu olhava havia um telão com legendas em tempo real feitas por um estenotipista. Só quem já ficou anos numa sala de aula sem entender uma palavra sequer consegue compreender o impacto disso. Estar numa situação dessas sem sentir medo ou desconforto é indescritível.

Éramos poucas pessoas com deficiência auditiva, pois a maioria dos membros do Fórum Mundial da Audição são audiologistas, médicos e funcionários de fundações e da indústria da audição ouvintes. Mas estávamos bem representados, e inclusive o presidente da federação internacional dos surdos sinalizados (Kasper Bergman, World Federation of the Deaf) estava presente junto com as suas intérpretes de língua de sinais. Conheci a fundadora do CIICA, Sue Archibold,  Lidia Best (Presidente da Federação Européia de pessoas com deficiência auditiva), Paige Stringer (Global Foundation for Children with Hearing Loss), com as quais conversei bastante e descobri que temos muitos desafios em comum.

Houve um momento em que as legendas pararam de funcionar, e todos nós que precisávamos delas nos olhamos com aquele olhar de “socorro”, e foi a Lidia quem ergueu o braço e avisou a todos o que estava acontecendo. A reunião só foi retomada assim que o problema foi resolvido. Esse foi um bom exemplo do poder da autoadvocacia, tema que é importantíssimo quando você é uma pessoa com deficiência.

Todos os presentes eram ligados a uma ONG, a uma fundação, a uma marca ou ao governo. Acho que eu e a Katya Freire (audiologista brasileira) éramos as únicas representando a nossa própria ‘eupresa’, rsrsrs. De qualquer forma, pessoas físicas não podem ser membros do Forum Mundial da Audição, apenas pessoas jurídicas. E é preciso passar por uma longa sabatina até provar que, mesmo sendo um stakeholder sem ligação com o governo ou instituições de caridade, você de fato faz algo concreto pela promoção da reabilitação auditiva no seu país.

Esqueci de contar que no balcão de atendimento da Organização Mundial da Saúde há aro magnético. Acabei nem usando porque cheguei dez minutos antes do início da reunião, correndo e toda suada, porque fiquei monitorando o meu ônibus pelo Google Maps mas monitorei o ônibus errado. Aí desci no lugar errado e tive que dar uma volta enorme a pé em cima da hora. Foi tenso.

Ouvir tantos sotaques diferentes, desvendar novos lábios, prestar atenção ao que as pessoas dizem em outra língua e falar inglês com desconhecidos é sempre um desafio que o meu cérebro adora. A Suíça é um país de primeiro mundo que te dá a acessibilidade que você precisa, mas o resto é por sua conta. Mesmo num ambiente assim as pessoas esquecem constantemente que há surdos no recinto. E isso me fez pensar como é importante que a gente saiba se virar ao invés de cair na armadilha de se sentir um coitadinho e automaticamente se excluir. Não entendeu?Pede para repetir. Alguém está falando rápido demais ou ao mesmo tempo? Levanta o braço e relembra o grupo sobre a sua dificuldade auditiva. É simples, a gente é que tem mania de complicar o que não precisa ser complicado.

Na Suíça não há nenhum tipo de fila preferencial, e você repensa a real necessidade disso quando se depara com um choque cultural desses. Ninguém te olha diferente quando percebe os aparelhos nos seus ouvidos, e fiquei com a nítida sensação de que ninguém dá a mínima para a deficiência de ninguém. A acessibilidade é garantida e o fato de alguém ter uma deficiência é tão naturalizado que passa batido para as outras pessoas. Vi pessoas com todos os tipos de deficiências circulando pela Organização Mundial de Saúde e não vi ninguém olhando para elas com cara de curiosidade ou estranhamento.

Se você ainda não leu o Relatório Mundial da Audição, lançado pela OMS em 2021, por favor,  faça o dowload e leia. É um material riquíssimo que terá valor inestimável por pelo menos uma década. Deve ser lido com atenção por todos os fonoaudiólogos, otorrinos, pais de pessoas com deficiência auditiva, professores de alunos com deficiência auditiva, e, principalmente, por todas as pessoas com algum grau de surdez. Falou-se muito sobre a importância do World Report on Hearing nessa reunião, e a Dra. Shelly Chadda reafirmou a importância de que ele seja usado como fonte sempre que necessário.

O tema do Dia Mundial da Audição de 2023 é Ear and Hearing Care for All. O objetivo é convencer os governos de todos os países a fornecer cuidados com a saúde auditiva e reabilitação auditiva na saúde pública. Aqui no Brasil, apesar dos pesares, temos uma das melhores políticas públicas de saúde auditiva do mundo. Você não encontra em nenhum outro país – salvo raras exceções – a possibilidade de fazer implante coclear sem pagar nada, sequer co-participação, por exemplo. Por isso bato tanto na tecla de que é preciso fiscalizar e ser um cidadão atuante nessa parte. Esbravejar em redes sociais não adianta nada, fazer denúncia para a Ouvidoria do Ministério da Saúde é que ajuda a consertar as coisas que estão erradas graças à má gestão que ainda é a realidade de muitos centros de reabilitação bancados com dinheiro do contribuinte brasileiro.

Conto com vocês para agitar o Dia Mundial da Audição no ano que vem. Já marca na agenda: 3 de março de 2023!

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O segundo dia no Forum Mundial da Audição

O segundo dia foi de muito trabalho. Fomos reunidos em grupos, e fiquei com o meu time no Changemakers. Esse grupo de trabalho se concentra em contar histórias de pessoas surdas que ajudam a movimentar as coisas nos lugares onde moram, além de conseguir os Champions do Dia Mundial da Audição (ano passado foram a Malala e o Bryan Adams).

Conversei um pouco com o Michael Chowen, um cavalheiro britânico que nos divertia demais nos intervalos de coffee break e, da minha parte, ganhou o troféu de pessoa mais divertida do World Hearing Forum. Ele é um filantropo do Reino Unido, e foi graças à sua valiosa contribuição que tivemos acessibilidade total na reunião (e em todas as reuniões online que fazemos do Forum Mundial da Audição). Antes do coffee break no qual tiramos essa foto, pedi a palavra para fazer um pequeno discurso sobre o tema do movimento PCD: “nothing about us without us” (nada sobre nós sem nós). Fiz isso para registrar que sinto muita falta de mais pessoas surdas como membros do Fórum e também em todos os lugares nos quais são tomadas decisões que irão nos afetar profundamente. O Mr. Chowen começou a aplaudir assim que acabei de falar, o que me deixou muito agradecida e emocionada.

Aliás, falta também que as pessoas surdas entendam o poder que têm como consumidores e cidadãos. A maioria de nós se contenta com a mísera posição de “paciente”, e só. Somos muito mais do que isso. Juntos, temos uma força gigantesca que, se usada para o bem e de modo estratégico, pode mudar tudo o que está errado não só na indústria da audição, mas também na saúde pública do nosso país. Se você chegou até aqui nesse post enorme, peço que reflita sobre isso.

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A despedida

A foto oficial do grupo é essa aí abaixo. Há 3 brasileiras na foto: eu, Katya Freire (audiologista brasileira radicada em Portugal) e Thais Morata (audiologista brasileira radicada nos EUA).

Saí de lá com a convicção de que o que fazemos na comunidade dos #surdosqueouvem tem um impacto social imensurável, especialmente porque não temos recursos nem time 100% dedicado a isso. A conscientização sobre saúde auditiva e a efetividade de uma força-tarefa formada por membros de uma comunidade que têm um propósito em comum constituem o mix perfeito de forças com poder de transformar milhares de vidas todos os dias. Que a gente tenha a energia necessária para continuar sempre em frente, ajudando uns aos outros e acolhendo os novos membros da nossa grande família, por longos anos.

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Depois conto mais sobre os passeios que fizemos em Genebra e Montreaux mas, por ora, compartilho com vocês uma foto da Broken Chair. A Cadeira quebrada é trabalho do escultor Daniel Berset. Foi criada em 1997 para a ONG Handicap International. Feita de 5,5 toneladas de madeira e erguendo-se a uma altura de 12 metros, esta impressionante obra de arte domina a Praça das Nações desde 1997. Sua mensagem é simples: lembre-se das vítimas de minas terrestres e incentive seu governo a banir as minas terrestres.

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Por último, fica o registro do meu eterno agradecimento à Dani Kraus pela companhia nessa viagem inesquecível. O sentimento comum que tivemos foi o de que nossos antepassados alemães, portugueses e italianos estavam viajando junto conosco por cada uma das ruelas que percorremos. E é muito bonito pensar que, pouco mais de cem anos atrás, aqueles que vieram antes de nós zarparam do Velho Continente para o Brasil, permitindo que acabássemos nos encontrando no rolê da surdez e ajudando tantas pessoas a voltarem a ouvir.

Gratidão à Dani e a cada um de vocês que apoia diariamente o meu trabalho, seja acompanhando nas redes sociais, seja como membro apoiador do Clube dos Surdos Que Ouvem. Juntos não somos só mais fortes, juntos somos PHODA.

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CLUBE DOS SURDOS QUE OUVEM

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About Author

Paula Pfeifer é uma surda que ouve com dois implantes cocleares. Ela é autora dos livros Crônicas da Surdez, Novas Crônicas da Surdez e Saia do Armário da Surdez e lidera a maior comunidade digital do Brasil de pessoas com perda auditiva que são usuárias de próteses auditivas.

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