Capacitismo é um tema que surgiu na minha vida após uma conversa com a Lau Patron. Até então eu não sabia que existia um nome para todo o preconceito e discriminação sofridos pelas pessoas com deficiência auditiva ou quaisquer outras deficiências. A surdez é uma deficiência invisível, o que significa que o desafio já começa aí. Nós moramos em um país onde as pessoas acham que é preciso VER a deficiência alheia para que ela exista. Depois de ver qual é a deficiência que nós temos é que as pessoas acham que ‘merecemos’ algum tipo de ajuda, caridade ou favor.
Eu tenho uma grande vantagem que, em muitos momentos, acaba sendo uma desvantagem: a tecnologia me reabilita quase 100%. Traduzindo: tenho surdez profunda nos dois ouvidos, não escuto absolutamente nada, mas uso dois implantes cocleares que me permitem voltar a ouvir (e a entender) quase todos os sons do mundo.
Isso vira uma desvantagem, por exemplo, na hora de buscar colocação profissional. Já ouvi inúmeras vezes que “as vagas que temos para PCDs são incompatíveis com o seu currículo, você é qualificada demais“. Ou então me oferecem vagas ‘exclusivas para PCDs’ que mal pagam salário mínimo.
Capacitismo é isso: quando enxergam só a sua deficiência e delimitam onde ou até onde você pode ir por causa dela. Quem sente na pele esse tipo de preconceito sabe como é humilhante ser reduzido à sua deficiência. É preciso ficar muito atento para não internalizar para sempre as coisas que ouvimos sobre nós mesmos por causa da nossa deficiência, porque é fácil acreditar que não somos capazes.
Gosto de ir direto para a conversa sobre a vida profissional porque é ela que paga as nossas contas, e a independência financeira é o que dá dignidade a qualquer ser humano. Quando falamos de PCDs, isso é primordial. Os números de PCDs no mercado formal de trabalho no Brasil são praticamente nulos. E você ganha 1 milhão se descobrir uma PCD em posição de liderança…
O capacitismo e a surdez: Diversidade e inclusão SÓ QUE NÃO
Sou vacinada quando se trata desse papo bonito de ‘diversidade e inclusão’: essa agenda NÃO inclui as pessoas com deficiência. Me mostre UMA empresa que tenha um programa de contratação, retenção e promoção de talentos PCDs no Brasil – e não estou falando de cota e nem da mentirinha bonita que diz que ‘nossas vagas são abertas a todas as pessoas’.
Estou falando de uma empresa que parou para ouvir PCDs e descobriu a infinidade de talentos qualificados que existe nessa população que é a maior minoria do mundo.
Há pouco, uma conhecida seguradora lançou um programa de estágio PCD que excluía pessoas com deficiência auditiva e visual “severa demais”, como eles não tiveram a menor vergonha de escrever no Instagram… Como se não bastasse, as empresas também acreditam num “padrão” de surdo: o ‘surdo-mudo’, o surdo que se comunica apenas através de Libras, o surdo que não ouve e que não usa tecnologias auditivas, o surdo que não sabe ler e escrever. Esse reducionismo a um “padrão” irreal é ultra capacitista: a diversidade da surdez é gigante.
Mas o olhar é tão pequeno, tão limitado e tão capacitista, que ficou definido que pessoas surdas devem estar apenas nas fábricas, no almoxarifado, na reposição. Escondidas em locais e posições nas quais não seja necessário interação social ou comunicação com outras pessoas.
Uma vez fui fazer uma palestra numa grande empresa. Me levaram para fazer um tour exploratório no QG – eles tinham um programa de contratação de surdos. Fui apresentada a uma moça surda que almoçava sozinha num canto do refeitório. A pessoa que me acompanhava disse: “É uma pena, ninguém conversa com ela, vive sozinha!”.
Contratar uma pessoa que se comunica em outra língua (Libras), não fornecer intérprete e inseri-la em um local com 500 pessoas que não usam a mesma língua é tudo, menos inclusão. Capacitismo é isso: abarrotar o caminho de uma pessoa com deficiência de obstáculos, não fornecer acessibilidade e esperar que ela seja um ‘exemplo de superação’ e os vença com a força do pensamento.
Capacitismo e Surdez
Capacitismo é olhar para uma pessoa e dizer: “Você não é surda, você é só deficiente auditiva!“.
Quem é você para definir qual com qual termo uma pessoa se identifica? Quem é você para sub-categorizar pessoas que possuem a mesma deficiência?
Capacitismo é chamar alguém de deficiente em tom pejorativo. O peso das palavras importa, e muito. Eu sou surda, e essa palavra denota que não posso ouvir. Mas se você me chamar de deficiente, fica parecendo que a única coisa que eu sou capaz de fazer é não ouvir. Se você se educa para usar os termos adequados no trato com pessoas negras ou LGBTQIA+, faça o mesmo conosco, que somos pessoas com deficiência.
Capacitismo é definir o tipo de ‘ajuda’ que uma PCD precisa sem consultá-la. No caso da surdez, a ‘ajuda’ se chama acessibilidade, e ela pode ser tanto legendas quanto intérprete de Libras. Apenas uma ou outra NÃO torna o seu evento, curso ou seja lá o que for ‘acessível a surdos’ – apenas os dois recursos fornecem acessibilidade a pessoas surdas, porque diferentes pessoas surdas precisam de diferentes recursos de acessibilidade.
Capacitismo é dizer “você não parece surda“. Significa que você tem uma ideia pejorativa sobre pessoas surdas e suas capacidades e habilidades, e quando alguém vai além do que você acredita que uma pessoa surda é capaz, essa pessoa não parece ter deficiência auditiva.
Capacitismo é dizer que eu tenho audição seletiva e só escuto o que quero, quando quero. Ninguém escolhe ter uma deficiência. Milhões de pessoas têm deficiências invisíveis.
Capacitismo é achar que você pode falar em nome de TODAS as pessoas com deficiência. Isso é impossível, tenha você uma deficiência ou não.
O capacitismo é tão cruel e tão enraizado nas entranhas da sociedade que estamos em 2023 e pessoas com deficiência ainda são, basicamente, invisíveis – mal e mal representadas por um cadeirante em alguma campanha publicitária, e olhe lá.
Um dos episódios mais marcantes de capacitismo que já vivi foi no meu primeiro dia de trabalho como funcionária pública. O ano era 2002 e ninguém falava sobre deficiências e inclusão como hoje. Acessibilidade praticamente não existia.
Fui apresentada da seguinte forma aos novos colegas: “Esse é o Cristiano. Esse é o Giovano. E essa é a deficiente!“. De repente, eu não tinha mais nome, e fui reduzida à minha surdez perante um monte de estranhos. Demorei mais de três anos até ‘provar’ para todos que eu era muito mais do que a minha deficiência auditiva. Foi uma pós graduação na escola da vida que levarei comigo para sempre.
O ciclo eterno da falta de acessibilidade
A falta de acessibilidade faz parecer que pessoas com deficiência não existem.
Sem acesso, não frequentamos os lugares – sejam eles físicos ou virtuais. Quando não frequentamos, as pessoas não lembram da nossa existência. Dessa forma, não pensam em nós na hora de criar produtos, serviços, eventos, etc. A falta de contato com PCDs faz com que pessoas sem deficiência sintam medo e hesitação quando interagem conosco, simplesmente porque não aprenderam sobre essas diferenças.
Isso perpetua a ideia errada de que somos uma minoria quase inexistente no Planeta Terra.
E você?
Se você é uma pessoa com deficiência auditiva, já parou para pensar em como o capacitismo te afeta?
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1 Comment
Aparelho Auditivo Discreto E Invisível: QUE VERGONHA DISSO
28/06/2022 at 15:06[…] Também rezei por um aparelho auditivo invisível, também quis poder comprar o top de linha quando não tinha dinheiro para isso, também achei que o discreto me pouparia de mais sofrimento. Isso tudo porque eu ainda não sabia o que era Capacitismo e desconhecia a sua íntima relação com a surdez. […]